“Quase Samba”, razões de sobra

Filme do cineasta mineiro Ricardo Targino troca o aglomerado pelo subúrbio, em narrativa com quatro vértices e inusitada relação amorosa

O cinema do século 21, raras vezes foge ao realismo, derivado das estruturas sociais, econômicas e políticas do sistema burguês e das elites conservadoras que as sustentam. Os filmes, seja de qual país for, estão sempre a reproduzi-las, tal uma cartilha, principalmente se vinda de Hollywood. Quando um pequeno filme nacional, como “Quase Samba”, foge a este padrão hegemônico/mercadológico e apresenta personagens e relações afetivas e amorosas disfuncionais, ainda em construção, é salutar.

Elas emergem aos poucos e acabam construindo um padrão amoroso. Caso de casal idoso/a, afro/caucasiano/a, gays/gays, lésbicas/lésbicas e famílias disfuncionais, hoje prestes a se tornar comuns. Talvez esta emergência tenha escapado ao cineasta Ricardo Targino na tessitura do roteiro, em sua estreia, mas ao encadear os entrechos acabou pondo a cantora de rádio afrodescendente Tereza (a cantora Mariene de Castro) numa amorosa relação triangular com o PM Fernando (o cantor Otto) e o técnico em eletrônica Charles (João Baldesserini).

Se trata antes de tudo da emergência da mulher, brotada das lutas emancipacionistas dos anos 60, e da aceitação (nem tanto) dos homens. Estes, devagar, vão entendendo o tipo de relacionamento que devem estabelecer com a parceira e o/s filho/s dela ou o/s seu/s de outra relação. E nem sempre o ex ou o atual parceiro o aceita tranquilamente, e, ao sentir-se ferido em seus brios machistas, parte para brutal confronto. Em sua opção dramática, Targino preferiu este caminho ao opor um ao outro.

Shirley é a mentora e protetora de Tereza

No entanto, se tivesse se limitado a ela, teria caído no clichê do triângulo amoroso. Sua saída foi introduzir o quarto vértice da relação Tereza/Fernando/Tereza/Charles, pais de seu filho de dois anos e do a nascer. A cabeleireira, amiga e confidente, a cross-dresser Shirley (Cadú Fávero), com o qual divide a casa, torna-se não só a mentora que a ajuda se equilibrar, como vê no policial uma ameaça não só a ela e aos filhos, como a si própria. Assim, sob a sua proteção, Tereza pode criar o filho e ter o outro a caminho, com segurança.

Ao construí-la como personagem multifacetada, com seus próprios casos e problemas, escapando ao estereótipo, Targino dá outro sentido a seu filme. Notadamente ao insinuar platônica paixão dela por Tereza e o modo como se prontifica a defendê-la e aos filhos. Isto se configura quando ela, enervada com Fernando, se arma, tal um vingador. Sem perder, inclusive, o modo transformista da primeira e segunda parte, e ainda mais no desfecho quando ressurge com outro visual, abrindo-se para o mar.

Não menos significativa é a mudança de cenário da ação feita por Targino. Toda ela se passa na periferia, antigo subúrbio, espécie de afastamento do aglomerado, tão estigmatizado como espaço do tráfico, do crime organizado e das milícias. Mas também pela maneira de ele denunciar a ocupação de ambos pelo crime. Tanto por Charles consertar máquinas caça-níqueis quanto pelas sub-reptícias atividades de seu parceiro Geraldo (Leandro Firmino), cujo envolvimento desconhece.

Crianças viram o troféu da trama

Com estes fios e frágeis subtramas, Targino passeia do drama ao policial e deste ao musical. Enquadra a face de Tereza em closes ao cantar e expõe sua gravidez diante de Fernando, em situações nas quais ele se vê fragilizado, pois a divide agora com Charles. Isto ocorre da metade da segunda parte para a terceira, quando o filme ganha ritmo e surge a trama do triângulo amoroso e do quarto vértice incluindo Shirley. E as crianças se tornam o troféu maior da trama, a ganhar complexidade.

É em torno delas que os vértices passam a girar, dada a insistência de Tereza em cuidar tanto do garoto de dois anos, quanto do que está gravida. Tarefa sua e de Shirley, numa mudança de consciência de ambos, vendo neles o motivo maior de ficarem juntos. Enquanto Charles, antes apático, se vê também ameaçado por Fernando. Principalmente ao descobri-lo integrante da milícia e viciado em cocaína, após execução de seu parceiro.

Ainda assim, estas sequências não preenchem as deficiências da primeira parte ao meio da segunda. Faltam cenas que situem personagens, situações e espaço da ação, e deixem o espectador encadear o que está ocorrendo. Dentre elas, a mudança de Tereza para o subúrbio, por fugir de Fernando, sua amizade inicial com Shirley e sua relação amorosa com Charles. Mesmo Targino tentando explicar o que está ocorrendo através de diálogos, a ação ficou confusa, porquanto eles não substituem a ação.

Atores não ajudam segurar a história

As deficiências de estrutura, de encadear os entrechos, terminam por fragilizar a história. Ela é confusa nas partes citadas e clara, sintética e prenhe de sentido da metade até o desfecho. Com a agravante de os interpretes, salvo Cadú Fávero, como Shirley, um bom ator, não darem complexidade a seus personagens. Em filme de fios e frágeis subtramas, muitas vezes os atores terminam amenizando as deficiências de roteiro.


Quase Samba. Drama. Brasil. 2014. 82 minutos. Trilha sonora: Pupilo. Montagem: Fabian Remy/Ricardo Targino. Fotografia: Pedro Urano. Roteiro/direção: Ricardo Targino. Elenco: Mariene de Castro, Cadú Fávero, João Baldesserini, Otto, Leandro Firmino.

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