“Dívida de Honra”, inóspitos afetos

Ator e cineasta estadunidense Tommy Lee Jones se vale do western para discutir o papel da mulher e a sociedade patriarcal nos EUA do século 19.

O western, gênero estadunidense, revigorado nos anos 60 pelo cineasta italiano Sérgio Leone (Era Uma Vez no Oeste. 1968), através do western-spaguetti, ressurge neste “Dívida de Honra” com tratamento difuso. O ator e cineasta estadunidense Tommy Lee Jones (Três Enterros, 2005) decide, a partir do romance de seu compatriota Glendon Swarthout, mergulhar no universo feminino da estrutura patriarcal do século 19, onde o papel da mulher era procriar e cuidar da família.

Assim, ou ela dispõe de si de acordo com suas escolhas, ou enlouquece pressionada pela moral, ética e costumes ditados pela fé protestante, numa região desolada do povoado de Loup, Nebraska, em 1854. Por razões diversas, as três donas-de-casa Arabela Sours (Grace Gummer), Gro Svendsen (Sonja Richter) e Theoline Belknap (Miranda Otto) acabam enlouquecendo, a ponto de a primeira jogar o bebê no cocho, por ter sido engravidada à força pelo companheiro.

Além disso, Gro tornou-se violenta e Theoline perdeu a fala, devido aos maus tratos de seus parceiros. São, por isso, tidas como loucas pela comunidade, devendo ser levadas para tratamento numa longínqua cidade do Iowa. Igualmente complexa é a vertente da quarentona Mary Bee Cuddy (Hilary Swanky), que representa a mulher independente por seu próprio esforço. Sozinha, ela cuida da casa, ara a terra e tem reservas no banco e influência em Loup.

Lee Jones mantém as convenções do gênero

Devido a este esforço, ela fala de si com orgulho, sem perceber que sua independência afasta os bons parceiros de casamento. São com estas vertentes que Lee Jones e seus corroteiristas Kieran Fitzgerald e Wesley A. Oliver desenvolvem o tema central, fugindo às convenções do western: o objetivo “inalcançável”, os rivais a criar obstáculos, o herói disposto a superá-los protegendo a amada e escapando à natureza inóspita.

O que predomina neste “Dívida de Honra” são os grandes planos de áreas inóspitas, a aridez da terra, o clima instável, as rústicas construções no meio à vastas áreas, ressaltadas pela fotografia de Rodrigo Prieto. E o comportamento agressivo de Cuddy e as ameaças que pesam sobre ela e as três mulheres durante a longa viagem.

E se nos clássicos western o comandado da caravana cabia ao experiente guia (A Grande Jornada, Raoul Walsh, 1930), aqui ele lhe é entregue. Assim, lhe cabe orientar e disciplinar o desertor Georges Briggs (Tommy Lee Jones), que aceita a contragosto cuidar das três mulheres, amarradas na trancada carroça durante a longa viagem.

Lee Jones altera a linha narrativa

Como nesse tipo de comando sempre há disputa, eles logo se engalfinham pelo poder, com ela se vendo diminuída pela experiência e a matreirice dele. Isso se evidencia quando ela fraqueja à aproximação dos índios, e ele, a partir daí se vale disso para inverter as posições. O espectador então percebe que Lee Jones dividiu o filme em duas vertentes: o da liderança absoluta de Cuddy, a mulher no comando, e o da supremacia do homem que, diante da “fragilidade da mulher”, passa a comandar.

Essa mudança ocorre quando as três mulheres começam a se acomodar às orientações de Briggs. Caso de Theoline, salva por ele ao ser raptada pelo colono que a queria como mulher, numa sequência que muda a escolha temática de Lee Jones. A inversão se completa quando ela lhe propõe casamento, se oferece sexualmente a ele e acaba se frustrando.

Conservar a linha narrativa seria Lee Jones mostrar Cuddy adquirindo experiência em várias cenas, dada à sua firmeza e coragem, dominando Briggs e superando as desconfianças das três mulheres. E, à maneira dele, vencendo os obstáculos, até entregá-las em Iowa. Teria, desse modo, invertido os papéis no western, gênero essencialmente masculino. As protegidas passam, então, a seguir, sem recusa, às ordens de Briggs, ou seja, não conseguiram escapar às amarras do homem, como almejavam.

Briggs virou o anti-herói

Sem Cuddy e em busca da recompensa, ele se torna o protetor delas, insurgindo-se contra o especulador imobiliário Aloysius Duffy (James Spader), quando este se nega a alimentá-las, mesmo sendo pago. Irado, Briggs incendeia o luxuoso prédio, como vingador dos oprimidos. É uma sequência altamente simbólica para o momento histórico atual, em que os especuladores saem ilesos e os trabalhadores arcam com os prejuízos.

Desta forma, Lee Jones acaba ressaltando o papel de Briggs como anti-herói. O objetivo dele, desde o início, era apenas receber a recompensa, pouco importava a situação das protegidas. Trapaceiro, beberrão e jogador, ele decide gastá-la e sofre um baque. “Esses bancos de Loup distribuem milhares dessas notas e elas não valem nada”, lhe diz o crupiê. Sua ambição e cobiça terminam com o golpe aplicado pelo banco que liberou o dinheiro para Cuddy atravessar mais de mil quilômetros e no fim era só papel. Toda esperteza dele se esvai e o machismo esboroa.



Divida de Honra.
(The Homesman). Western. EUA/França. 2014. 123 minutos. Música: Marco Beltrami. Editor: Roberto Silvi. Fotografia: Rodrigo Prieto. Roteiro: Tommy Lee Jones/Kieran Fitzgerald/ Wesley A. oliver. Direção: Tommy Lee Jones. Elenco: Hilary Swank, Tommy Lee Jones, Grace Gummer, Sonja Richter, Miranda Otto, Meryl Streep.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor