“O Desejo da Minha Alma”, duplas perdas

Em filme sobre a tragédia do tsumani em Fukushima, diretor japonês Masakazu Sugita mostra a dupla perda que atingem duas crianças.

Muito depois de este “O Desejo da Minha Alma” terminar, duas sequências ainda permanecem na mente do espectador. Uma como reflexo da dupla tragédia a se abater sobre a pré-adolescente Haruna (Ayane Ohomori), a outra simbolizando a pureza do garotinho Shota (Riku Oishi), ao lhe oferecer uma flor. Ambas são igualmente vítimas do tsumani que atingiu a Central Nuclear da Fukushima Daiichi no nordeste do Japão, em 11 de março de 2014, deixando 15.884 mortos e milhares de feridos. 

Através das crianças, o diretor/roteirista Masakazu Sugita, em seu filme de estreia, dá face ao que cifrões e estatísticas encobrem, dada à tendência da média burguesa em destacar nessas tragédias as perdas econômico-financeiras e não as perdas humanas e a devastação do meio-ambiente. Estas sempre ficam ocultas ou são relegadas ao esquecimento. Entre flahsbacks para matizar os estragos, Sugita mostra-as perdidas entre escombros e fumaça, ainda sem perceber que lhes espera.

Elas se dividem, assim, entre o que aconteceu e o esforço para se adaptar à nova realidade. O que ressalta o drama particular em meio ao trauma coletivo, provocado em princípio pelo terremoto de 8.9 na escala Richter, mas transformado em tsumani ao entrar em contato com os reatores da Fukushima Daiichi. Os resultados desta combustão foram perdas humanas, contaminação de áreas do Oceano Pacífico, devastação da fauna e flora e abalo do eixo da Terra.

Dupla tragédia dos pais e de habitat

Estes são os efeitos das escolhas do Sistema que, mesmo sabendo dos riscos da energia nuclear e da incidência de terremotos na região, insistiu em usá-la como fonte de energia em inúmeras cidades, dentre elas a atingida Onahawa, na região de Miyagi. E Sugita, acertadamente, centra sua narrativa nos efeitos destas decisões, mostrando a dupla perda de Haruna e Shota: a dos pais e a de seu habitat. Não bastasse, vão morar com os tios em outra cidade, onde se sentem desenraizados.

Mas embora a tia (Nahoto Yoshimoto) e o tio os tratem com carinho, não se sentem adaptados à casa, à cidade, aos novos colegas. Shota sempre se lembra dos pais indo para algum lugar, como se a qualquer momento retornassem. Seus passeios se limitam ao viveiro de plantas ou às cercanias da casa dos tios. Com Haruna é pior. Ela tem dificuldade para se adaptar à nova escola e, além disso, sofre bullyng e se vê rejeitada pelos colegas. E também tem saudade de seu antigo meio.

Sugita a estrutura como garota altiva, sem abalos psicológicos, decidida a não deixar o irmão descobrir seu jogo. A cada pergunta dele se esforça para convencê-lo de que os pais retornarão da viagem. No entanto, esta carapaça está prestes a se romper. E justo na escola onde os novos colegas deveriam aceitá-la. Nada disso ocorre. Então, ela se desespera ao voltar para casa, correndo e chorando na chuva, num simbólico plano-sequência.

Haruna oculta a realidade a Shota

Isto num filme sobre a perda dos pais e a repentina entrada no universo adulto, apressada pela ação brutal da natureza e as escolhas do Sistema. Haruna é ainda pré-adolescente, porém seu impasse com Shota exige uma tomada de posição. Não lhe basta revelar a verdade, também ela precisa se localizar. A saída, como nos filmes neorrealistas, é enfrentar suas contradições numa viagem de trem, de ônibus, a pé, para se reencontrar.

É uma busca ao reverso, pois Haruna sabe que nada encontrará, enquanto Shota só tem certezas. Mesma ilusão do garotinho Alexandre (Michalis Zeke) e de sua irmã pré-adolescente Voula (Tania Palaiologou) de “Paisagem na Neblima (1988)” ao saírem a pé da Grécia para se encontrar com o pai na Suécia. Theo Angelopoulos constrói essa odisseia freudiana, como uma projeção deles, porquanto nenhuma certeza, têm.

Já Haruna viaja para derrubar o muro erguido por ela para proteger o irmão. Eles percorrem parte da cidade natal até chegar ao mar, onde tudo começou. A câmera de Sugita apenas registra as ruas, as casas, o mato alto, o mar ao longe. Para o garotinho é o reencontro com os pais e seu habitat. Para Haruna é puro sofrimento. Eles caminham pela praia, brincam, as ondas vão-e-vêm. Todo o arcabouço por ela montado se desfaz.

Flor amarela é símbolo do perdão

A imagem que sobrevém nesta sequência é uma alegoria sobre a intuição do garotinho e o alívio trazido para a irmã. Quando ela, enfim, lhe revela a verdade espera pelo choro dele. Entretanto, Sugita surpreende o espectador com uma criativa solução. Faz Shota entregar à irmã a flor silvestre amarela colhida por ele à beira da praia. Eles acabam se reconciliando e mirando a fusão do mar com o horizonte.

Sugita, mesmo preocupado com as vítimas, não é pessimista. Igual a Nobuteru Uchida em “Odayaka (2012)”, exibido pelo Indie-BH 2013. Neste, as amigas Saeko e Yukakose se insurgem contra a passividade da vizinhança num subúrbio de Tóquio diante da tragédia da Fukushima Daiichi e decidem chamar atenção para os riscos de sua repetição. Desta forma, Sugita e Uchida tiram o cinema do olhar pelo olhar e se tornam ativos.

“O Desejo da Minha Alma”. (Hitono Nozomino Yorokobiyo). Drama. Japão. 2014. 85 minutos. Trilha sonora: Shingo Inaoka. Montagem: Ryô Hayano. Fotografia: Yoshio Kitagawa. Roteiro/direção: Masakazu Sugita. Elenco: Ayane Ohmori, Riku Oishi, Nahoko Yoshimoto.

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