"Últimas Conversas”: Fugindo das caixas

Em filme que encerra sua carreira, cineasta Eduardo Coutinho trata dos conflitos freudianos, familiares e raciais de secundaristas afros e brancos.

Na sociedade de caixas em que foram encerrados os afros no Brasil, abri-las para mostrar o que elas ocultam serve para romper estereótipos e falsas construções. Em seu derradeiro filme, o cineasta paulista Eduardo Coutinho (1933/2014) desmonta em sete entrevistas, das dez que o compõem, a falsa imagem de afros acomodados em caixas raciais, familiares, habitacionais e trabalho, como se este fosse seu papel na estrutura de classe brasileira. A de serem os eternos excluídos.

Os jovens afros vistos pelo espectador neste “Últimas Conversas” fogem aos estereótipos criados por certos filmes nacionais e a mídia, sempre. E, portanto, não se enquadram nas imagens dos moradores de mangues e aglomerados, vistos como membros do tráfico e ocupantes das prisões. Eles invertem, assim, a falsa visão de que, por estudarem em escolas públicas, não conseguem chegar às universidades, sendo, assim, perpetuamente sentenciados a ser mão-de-obra barata ou desempregada.

Em suas entrevistas, eles mostram o quanto estas caixas são falsas e frágeis, não mais se sustentando. Embora enfrentem conflitos próprios de sua idade buscam criar seu espaço na sociedade capitalista que só lhes cria obstáculo. Breno, representante de turma, filho de sargento do exército, relata seus problemas na escola onde sofreu o bullying, que o levou à terapia, até retornar à escola. Isto influiu em sua busca interior, fazendo-o trocar o catolicismo pelo ateísmo. Hoje sonha cursar Medicina.

Bulliyng, constância na vida dos afros

Não menos aflitiva é a história de Pamela, a alegre estudante de Geologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-estudante de colégio de freiras, a exemplo de Breno foi vítima de bullyng e submetida à humilhação por ser afro. “Passei por zombaria por ser negra. Me senti como um objeto.

Todo mundo ria de mim”. As lembranças dessas crueldades diante das câmeras a leva às lágrimas.

Entretanto, não perdeu o humor. Cantou afinada a música em inglês gravada por ela no celular.

É através de Pamela que a reparação aos descendentes dos escravos traficados para o Brasil ganha forma. Cotista, ela não entra em detalhes, tampouco Coutinho a instiga a falar. Essa, porém, continua sendo uma conquista não absorvida por setores afrodescendentes. Evani, contesta-a, argumentando que “tenho capacidade para disputar com os brancos”. Não se trata, porém, de disputa entre brancos e negros, mas do justo acesso ao bem social do qual os afros foram excluídos pelo sistema escravagista e mantidos pela burguesia, atual ocupante dos palácios/casa-grande.

Na verdade, este momento histórico de inclusão social se estende às famílias formadas por casais do mesmo sexo. A afro Estephane não se furta em relatar sua convivência com a mãe enfermeira e a companheira dela, a quem chama de Papi. Coutinho a deixa falar tranquilamente, sem trauma ou preconceito. Mas mergulha o jovem afro Teodoro num jogo em que o silêncio se sobrepõe à palavra, completado pela lapidar frase: ”O silêncio pode provocar insanidade”. Mais do que isso: omissão e caos.

Unidade vem da economia de meios

Mas também a duplicidade de conflitos gerados pela separação dos pais, pode gerar situações insustentáveis para filhos e filhas. Amanda, carioca, branca, teve problemas com o pai e se reconciliou com ele, depois de anos. Não menos traumático é o caso de Rafaela, branca, cuja vida oscila entre a ausência do pai, internado numa clínica psiquiátrica, e a difícil convivência com o padrasto, de quem ela e a irmã sofreram assédio sexual.

Como sempre Coutinho dá unidade ao filme por meio dos temas surgidos de sua interação com os “interpretes”. Ela vem dos ensaios, da economia de meios, centrados no diretor, na câmera e na porta por onde eles entram e saem. Mas também da montagem das cenas e sequências dos “personagens”, que dita inclusive o ritmo de suas intervenções.

Neste tipo de documentário as reações/respostas dos “entrevistados” são verdadeiras interpretações, como o sofrido choro de Rafaela, ou o riso/choro de Pamela. E torna a estruturação do filme mais complexa, a exemplo de “Edifício Master, 2002”. Enquanto neste, os “entrevistados” são de idades variadas, neste “Últimas Conversas”, eles são estudantes do ensino médio, que enfrentam problemas comuns à juventude atual.

Desfecho vale por todo filme

Em seu derradeiro filme, Coutinho que percorreu palcos (Pluff, O Fantasminha) e estúdios de televisão e sets de cinema como diretor, em 50 anos de carreira, se deu a liberdade de interagir com a garotinha Luíza, de seis anos. Única de classe média alta, ela trava com ele um diálogo filosófico e teológico, encerrado com a frase dela: “O Homem que morreu, a gente chama de Deus” (citação não literal). E então rindo, Coutinho pede ao assistente para abrir a porta e ela se caminhar para a saída em contra-luz, como se fosse tragada pela eternidade. Brilhante epifania.

“Últimas Conversas”. Documentário. Brasil. 2014. 85 minutos. Montagem: Jordana Berg. Fotografia: Jacques Cheviche. Filme terminado pelo diretor João Moreira Salles. Diretor/roteirista: Eduardo Coutinho.

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