“Três Corações”, dialética da paixão

Cineasta francês Benoît Jacquot inverte história amorosa para priorizar a paixão neste filme que trata também da corrupção em gabinete municipal.

Com drama romântico, às vezes resvalando para o melodrama, o cineasta francês Benoît Jacquot (Adeus, Minha Rainha (2012)” centra sua narrativa neste “Três Corações” num quiproquó amoralista para dar conta de seu tema. Não se furta, inclusive de, na terceira parte, fazer os personagens se entregarem às correrias típicas das comédias picarescas à Tony Richardson (1928/1991), em “Tom Jones (1963)”. Pode parecer falso, ingênuo às vezes, mas não tira do filme certo frescor.

Sua história assemelha-se ao drama de desencontros em que sempre há algo a atrapalhar os enamorados. Eles, Marc Beaulieu (Benoît Poelvoorde) e Sylvie Berger (Charlotte Gainsbourg) são dois solitários à procura de seu duplo, que se encontram flanando à noite numa cidade do interior da França. Porém, não é só isso que conta, mas também o modo como Jacquot estrutura a narrativa para lhe veracidade.

A começar pela delicadeza com que filma o encontro dos dois. Sua câmera se mantém à certa distância, enquanto Marc e Sylvie se tateiam durante a caminhada pela rua deserta. Este curto encontro será o bastante para Jacquot criar o espaço-símbolo para a paixão de um pelo outro, consignada pelo Jardim das Tulherias, em Paris. Espécie de apropriação hollywoodiana cheia de artifícios e clichês para ampliar atrações turísticas.

Jacquot elimina as explicações

Jacquot, no entanto, é hábil em usá-los para dar à trama estética original. Elimina as transições, as explicações, as rememorações (flashbacks), e repete os mesmos enquadramentos, diálogos e cenários do encontro de Marc com Sylvie no de Marc com Sophie (Chiara Mastroianni). Toda a trama gira em torno destes encontros, cabendo ao espectador se manter atento, pois Jacquot não lhe dará pistas, salvo via alguns símbolos.

Mas usa o suspense para mantê-lo atento, fazendo pairar sobre Sophie e Marc a presença de Sylvie, que vive agora em Nova York. Em qualquer instante, ela pode se materializar no ambiente burguês em que Marc passa a viver, depois de se casar com Sophie. Há sempre Madame Berger (Catherine Deneuve) a espreitá-lo à cabeceira da mesa, tal matriarca a zelar pela segurança das filhas e dos negócios da família num antiquário.

São com estes recursos que Jacquot trabalha, evitando pistas para os personagens e o espectador. Dá ideia de o ambiente burguês, com seu ritual de sobriedade, dar plena tranquilidade a Marc, sendo Sylvie o passado. O único problema a incomodá-lo é a descoberta de que o prefeito da cidadezinha se enriqueceu às custas dos cofres públicos e, por isso, o investiga sob claras ameaças. Mas ele não recua, pelo contrário resiste.

Burguesia se apropria do patrimônio público

Jacquot, ainda que denuncie esta pratica do sistema burguês, não lhe adiciona qualquer comentário, a exemplo de Claude Chabrol (1930/2010), em “A Comédia do Poder (2006)”. A apropriação dos recursos públicos pela burguesia advém da visão de que ela não é só dona dos meios de produção, mas também dos recursos públicos, que a ela deve retornar. Assim, sonega impostos, faz evasão de divisas para os paraísos fiscais e distribui propina para monopolizar as obras públicas e seus lucros.

Entretanto, Jacquot, com sua bonomia equitativa, mostra as antiquárias Berger como o oposto do prefeito. Quando os impostos são recolhidos a menos “se trata de simples descuido”. Por outro lado, são estes traços e a frase repetida por Sylvie e Sophie, de que “elas não conseguiriam viver uma sem a outra”, que não prenunciam rupturas entre elas. Ali tudo parece se encaixar, até Jacquot reintroduzir o desconforto.

Este ao surgir, na terceira parte do filme, exige toda atenção do espectador que espera explicação clara para a trama. Mas, como não se trata de trama hollywoodiana ou de novela de TV, nem tudo é explicadinho. Jacquot restringe o desvendar dos elos a só duas rápidas cenas: I – a do isqueiro que liga Marc a Sylvie, II – a do celular que esclarece a Sophie a relação de Marc com Sylvie, encerrando o casamento deles. O resto é nuvem.

Sequências finais caem no melodrama

Mas se estas técnicas narrativas ajudam Jacquot a fugir aos clichês, as sucessivas sequências dos encontros nada furtivos de Marc com Sylvie no pequeno quarto da mansão e no mato à noite para burlar a vigilância de Sophie e Madame Berger, só fragilizam a trama. Mais ainda quando o choro de Sylvie aos pés do companheiro Christophe descamba para o melodrama, rompendo o equilíbrio narrativo. Faltaram sequências intermediárias para a trama chegar ao desfecho sem sobressaltos, mesmo ditados por elipses.

Entretanto, se existem opçõs narrativas questionáveis, o bom deste “Três Corações” é mostrar a primazia da paixão sobre a moral burguesa. De tornar os amantes um casal, devido à primazia deles, ditada pelo encontro de Marc com Sophie antes. Noutras circunstâncias, o filme teria a prevalência do casamento de aparências. Jacquot preferiu romper com esta imposição burguesa/religiosa. Assim, venceu a dialética da paixão.


Três Corações. 3 coeurs. Drama. França/Alemanha/Bélgica. 2014. 105 minutos. Montagem: Julia Gregory. Fotografia: Julien Hirsch. Roteiro: Benoît Jacquot/ Julien Boivent. Diretor: Benoît Jacquot. Elenco: Benoît Poelvoorde, Charlotte Gainsbourg, Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve.

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