“O Último Ato”, árduas mutações

Cineasta estadunidense Barry Levinson mergulha nos conflitos de ator na terceira idade e nas mutações sociais, sexuais e tecnológicas modernas

Há todo momento neste “O Último Ato” a realidade se funde com a ficção para ditar comportamentos e estados psicológicos e mostrar o tênue limite entre ambos. Não que o realismo não deixe de se impor através das mutações comportamentais, sexuais e tecnológicas atuais. São eles que provocam esta interpenetração. Mesmo se os personagens tendam a não perceber as diferenças e confundam um e outro. Daí surgem situações vividas pela classe média estadunidense, cheia de fantasmas e temores.

Mas este tecer, às vezes metafísico, sintetiza a desconstrução de preceitos, normas e costumes, num filme que une o cineasta estadunidense Barry Levinson (1942), a seu compatriota, o escritor Philip Roth (1933). Um afeito a encenações do diferente (Rain Man, 1988), o outro a tratar das idealizações e fracassos da classe média (Pastoral Americana, 1998). De forma a apontar o plasmado na sociedade burguesa estadunidense.

São duplicidades que envolvem o idoso ator Simon Axler (Al Pacino), depois de sofrer uma crise durante a peça Hamlet. Seu universo de fama, holofotes e fãs não dá conta das mutações à sua volta. Os seres que agora o rodeiam são produto da sociedade burguesa em fragmentação. O que lhe parecia estável no palco e nas relações amorosas e familiares não é mais.

Sexo se tornou ato mercantil

As relações amorosas de Simon com a jovem Pegeen Stapleford (Greta Gerwig) o configuram. Ela passa a viver com ele, atraindo outras parceiras. Dentre elas, Priscila, agora Prince (Billy Porter), pós-mudança de sexo. É uma relação a dois, às vezes a três. Se não é possível, ela troca-o por substitutos de plasma e plástico. O desejo e o êxtase do ato são substituídos pela ação mecânica. E o mercado aí está para abastecê-la.

São mudanças operadas devagar, dada à própria exigência das relações amorosas. Dentre elas, a superação das barreiras de idade por casais de jovens e idosos/as. Os 67 anos de Simon não fazem diferença para Pegeen. Aos 30 anos, ela quer viver a fantasia de adolescente. O que conta é o desejo, o estar junto. Tendência aceita pelo solitário Simon, em instantes de crise e conflitos da terceira idade.

Mas Simon, como ídolo da classe média, espelha o mito do sucesso e do individualismo, numa sociedade desigual. E provoca as mais diversas fantasias de seus fãs. Principalmente em Sybil Van Buren (Mina Ariana), que o confunde com os personagens durões interpretados por ele no cinema. Inclusive insiste em contratá-lo como assassino de aluguel, em claro conflito entre ficção e realidade. Esta confusão o enseja a tentar, também ele, fugir dos fantasmas dos personagens a persegui-lo.

Sessões via Skype são insuficientes

Na verdade, as dubiedades permeiam todo o filme. A crise tida por Simon, deriva de seu mergulho nos personagens das tragédias shakespearianas por ele interpretadas. Ricardo III, Hamlet e Macbeth são densos épicos, com ação e batalhas encarniçadas. E exigem dele esforço físico e mental para manter a ação exigida e o público ligado. Beirando os 70 anos, ele vê sua carreira chegar ao fim, em razão da crise psicológica.

Para superar este trauma, ele se submete a tratamento com o psiquiatra Farr (Dylan Baker). As sessões via skype introduzem a tecnologia na relação médico-paciente, noutra dualidade. O médico vira uma imagem, embora em tempo real, para Simon, acostumado a mergulhar na ficção. Porém Farr, ao vê-lo confuso e sob pressão lhe diz: vamos examinar isso aqui pessoalmente. Assim, a tecnologia como mediadora se torna insuficiente, precisando do presencial para reafirmar o real in totum.

No entanto, Simon apenas volta ao mundo real quando se percebe em crise financeira. Surge então o comercial sobre rejuvenescedor de cabelos, confirmando o quanto o mercado publicitário via-o com a imagem rentável. Porém, em meio às dúvidas, aparece outra saída: interpretar o “Rei Lear”, outro denso drama de Willian Shakespeare (1564/1616). O que lhe permite entranhar a tragédia em sua própria existência e o real superar a ficção.

Mudanças parciais indicam caminhos

Através destas dualidades, a dupla Roth/Levinson cuida da insinuação das rupturas nos esteios burgueses. Elas atingem costumes e moral herdados do sistema feudal e criam novas formas de construir e ver o outro. Assim, rompem isolamentos e abrem caminhos. Não são ainda o que engendra coletivamente a construção das estruturas de superação do sistema capitalista. Este, sim, demanda outro tipo de edificação, mais ousado, mais libertário. Porém forçar as estruturas já é um grande avanço.

Não menos válido é Levinson dotar seu filme de andamento e clima bergmaniano (A Hora do Lobo, 1968). Simon é um homem atormentado, duplamente acossado pelos personagens e a fama que o tonou solitário e sem família. Levinson filma Pacino em ambientes dominados pelas sombras, com muitos closes e planos aproximados, devastando seu rosto enrugado e cabelos revoltos. Ele não reage às mudanças, apenas as absorve.


“O Último Ato”
(The Humbling/A Humilhação). Drama. EUA. 2015. 112 minutos. Editor: Aaron Yanes. Música: Marcelo Zarvos. Fotografia: Adam Jandrup. Roteiro: Buck Henry, Michal Zebede, baseado na obra de Philip Roth. Direção: Barry Levinson. Elenco: Al Pacino, Greta Gerwig, Nina Arianda, Billy Porter, Dianne Wiest.

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