"Libertem Ângela Davis”, dando face ao poder negro

Filme da cineasta estadunidense Shola Lynch refaz nesta cinebiografia a luta da ativista Ângela Davis contra a segregação racial nos anos 60 e 70

Existe uma salutar construção narrativa no documentário “Libertem Ângela Davis”, agora em DVD. Sua diretora-roteirista, a estadunidense Shola Lynch, dá-lhe a estrutura de um thriller-político, cheio de mistério e suspense, começando-o pelo final. Embora se conheça o desfecho da história da professora e ativista Ângela Ivonne Davis (26/01/1944), ele só se desenvolve na terceira parte do filme. E se trata de técnica ficcional, pois, embora real, é organizado para gerar tensão e levar à apoteose.

Mas hoje documentários como os de Eduardo Coutinho (Edifício Master, 2002), são estruturados como entrevistas de cine-verdade. Mesclam o real com a construção narrativa para desvendar o “personagem”. E em sua obra, Lynch constrói uma espécie de trama concentrada nos seis anos (1966/1972), que sintetizam o início e o ápice do ativismo de Ângela Davis.

Ao fazê-lo usa recriação para engendrar um clima intimista e humanizar a cine-biografada. Entrega-a ao diretor Bradford Young, como se tratasse de diretor de segunda-unidade. Assim, Ângela Davis (Eisa Davis) e seu namorado, o jovem presidiário George Jackson (Bradon Dirden), tornam-se “personagens-ficcionalizados”. Isto num filme que, mesmo tendo preâmbulo, segue linear com “personagens” e situações políticas dos anos 60/70, com cenas de Black Powers, concentrações de hippies e passeatas contra a guerra do Vietnã (1955/1975).

Entrevistas ajudam conduzir narrativa

Lynch usa fotos da família afro-estadunidense de alta classe média, para matizar as origens de Ângela Davis, enquanto ela, em entrevista, aos 68 (o filme é de 2012) fala de sua formação secundária na Little Red School, de Nova York, e superior na Universidade São Diego, na Califórnia, e, depois, sua formação em filosofia na Universidade de Frankfurt, Alemanha.

As entrevistas com amigos de faculdade, jornalistas e da irmã Fania Davis ajudam a conduzir a narrativa, tornando o filme reflexivo. “A revolução significa pensar nas coisas de forma radicalmente diferente. Considerando a história dos EUA, a ideia de igualdade para negros, igualdade efetiva, era uma coisa revolucionária”, explica o fotografo caucasiano Stephen Shames, amigo de faculdade de Davis.

Para Davis, luta deve ser coletiva

Estes recursos, além das fotos e manchetes de jornais, sequências e cenas de telejornais das manifestações contra o Sistema, como se dizia na época, trazem o filme para a época. É quando Ângela Davis emerge como ativista, depois de aderir ao Partido dos Panteras Negras e trocá-lo pelo Partido Comunista dos Estados Unidos. “Vi que precisava do coletivo, de pessoas com quem me engajar. (E) que não conseguiria nada importante individualmente”. Isto ela só iria encontrar no contato com as massas.

O estudo do marxismo em Frankfurt havia ampliado sua visão político-ideológica. A situação a que eram submetidos os afrodescendentes nos EUA, sem emprego, direito ao voto e inclusão social, exigia outro patamar de luta. ”(…) mudar essas condições significa estabelecer uma sociedade socialista”. Mesmo porque o próprio PC, no qual militava, já defendia o aceso à moradia e o fim da violência policial e do desemprego.

Àquela altura buscava também um emprego. Foi admitida pela UCLA (Universidade de Columbia, Los Angeles) como professora de filosofia, mas acabou demitida, depois de levar mais de dois mil estudantes à sua aula inaugural, por ter se declarado comunista. O então governador da Califórnia, Ronald Reagan (1967/1975) moveu contra ela uma campanha cruel. ”A contratação da srtª Davis foi uma provocação proposital”, afirmou, voltando aos tempos do macarthismo (1947/1958).

FBI persegue-a por todo EUA

A partir daí a ação do filme acelera. O espectador tem a sensação de voltar aos policiais dos anos 40 e 50. Através de fotografias, Lynch mostra o fracasso da tentativa de Jonathan, irmão de George, para tirá-lo da prisão. A ousadia termina com a morte do juiz Harold Hurley e dos dois jovens que o ajudaram. Ângela Davis acaba sendo acusada de tramar a fuga do namorado George e de ser dona da arma que vitimou o juiz.

O FBI, chefiado pelo fascista Edgar J. Hoover (1895/1972), a mando do presidente Richard Nixon (1969/1974), coloca-a na lista dos dez criminosos mais procurados dos EUA. E lhe empreende uma caçada através dos EUA, até prendê-la em Nova York. Nestas eletrizantes sequências, Lynch se vale do estilo noir, para mostrá-la em quartos escuros de hotéis, neons pulsantes, ruas sombrias, corredores vazios, ficcionalizando a realidade.

Sua libertação, depois de 16 meses presa e 18 em julgamento, sob a acusação de assassinato, sequestro e conspiração, devido à mobilização mundial, acaba sendo um triunfo. Lynch montou-o, dando-lhe o encadeado de thriller-político, dividindo-o em primórdios, fase de ativista e de luta para sobreviver à perseguição do Sistema. O segredo está na sala de montagem, onde recebeu a forma de narrativa, como se fosse ficção. O resultado é um filme enxuto e tenso.



Libertem Ângela Davis. (Free Angela and all political prisoners). Documentário. EUA/França. 2012. 102 minutos. Montagem: Lewis Erskine, Marion Monnier, Sheila Shirazi. Música: Vernon Reid. Fotografia: Sandi Sissel. Roteiro/direção: Shola Lynch. Elenco: Eisa Davis, Brandon Dirden.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor