“Casa Grande”, país das aparências

Filme do cineasta carioca Fellipe Gamarano Barbosa desfaz as aparências ao mostrar a luta de classes e a persistência da casa-grande no Brasil

Não é só burguês que põe a bola debaixo do braço e acaba com o jogo. Também a criadagem pode, em seu interesse, retirar não a bola, mas o time de campo para deixar sua mansão entregue às baratas. Não é outro o significado deste “Casa Grande”, do cineasta carioca Fellipe Gamarano Barbosa. Nele o especulador Hugo Cavalcante (Marcello Novaes), depois de perder dinheiro especulando na bolsa, se vê em apuros para manter o caro estilo de vida e a mansão de 1.300 m² na Barra da Tijuca, Rio Janeiro.

Este é o arcabouço montado por Barbosa para expor a realidade sócio-político-econômica brasileira, através da luta de classes hoje escancarada no país. Não aquela em curso na rua, protagonizada pela direita golpista, liderada pelo PSDB, mas a que prefere manter as aparências, assistindo o conflito na telinha da mídia do capital. Hugo vive a elogiar o Plano Real e os economistas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), tidos por ele como salvadores da pátria (sic).

Os conflitos brotam no interior da mansão, trazendo à discussão a real situação financeira dos Cavalcante. Seja na conversa sobre a escolha do curso superior pelo filho de 17 anos, Jean (Thales Cavalcanti), seja em como pagar as contas do mês. A nação real entra pelas portas dos fundos, configurada na cozinheira afrodescendente Noêmia (Marília Coelho), na arrumadeira nordestina Rita (Clarissa Pinheiro) e em seu conterrâneo, o motorista Severino (Gentil Cordeiro), como algo normal, no país das aparências.

Senhores de ontem, mesmos de hoje

No início, têm-se a impressão de que Barbosa encaminha o filme para o rito de passagem de Jean, dada à indecisão deste quanto ao curso a escolher e as pressões do pai e da mãe Sônia (Suzana Pires). Mas, aos poucos, a criadagem se insinua nos entrechos, como agente insubmisso, dando complexidade à narrativa. É Rita que, ao ser acuada por Sonia, retruca dizendo que ela não devia invadir sua privacidade. É Noêmia não aceitando “ser da casa” e exigindo o respeito ao contrato de trabalho.

Se o senhor de escravos os tratava como propriedade, os tempos são outros e os direitos sagrados. Mesmo assim, Hugo obriga seus empregados a entrar pelos fundos, mantendo-os “em seu lugar”. Inclusive na insistência do sinhozinho Jean com a arrumadeira Rita, para obter dela “favores sexuais”. Assim, Barbosa confirma a persistência das relações escravagistas, num país em que os senhores querem todos no aglomerado.

Esta radiografia das turbulentas relações da burguesia com os trabalhadores domésticos se aprofunda quando Hugo, devido a perdas com a especulação, não consegue mais pagá-los e tampouco esconder a falência de Sonia e dos filhos Jean e Natalie (Alice Melo). Surgem múltiplos confrontos, fazendo ruir as falácias da riqueza sustentada pelas aparências e a crença na especulação financeira, como se carteado fosse ciência.

Cota, para Luíza, não é privilégio

Não bastasse essas nuances, Barbosa introduz a jovem Luíza (Bruna Anaya), morena, de origem proletária, que busca cursar Medicina. Ela deve preencher as vagas destinadas pelo Enem aos alunos da escola pública nas universidades oficiais. E trava com Hugo efervescente debate sobre cotas para afrodescendentes, desigualdade e reparação. Afiada, ela rebate às falsas acusações de favorecimento, desnudando suas más intenções.

É através dela que Jean entende as contraditórias posições de classe do pai. Brilhante a sequência em que ele, durante o vestibular, entende a falácia que é sua vida e decide seguir seu próprio curso. Barbosa faz uma inversão narrativa, mudando o tema central, para adentrar ao meio proletário – o aglomerado onde moram Severino, Noêmia e Rita. É como se ele, finalmente, desmontasse séculos de sinhozinho e se libertasse.

Significa que, mesmo cheio de contradições, o país pode trilhar um caminho inverso ao dos novos escravocratas. É um primor de síntese e metáfora o reencontro de Jean com Rita, sem as amarras do senhorio. Ele deixa a cama, abre a janela e sai para tomar sol nos fundos do barraco. Optou por outro tipo de vida. Os que ali moram, mesmo forçados pela especulação imobiliária, ainda resistem à exploração escravocrata.

Não bastassem estas virtudes, Barbosa conduz o filme com rigor, sem torná-lo árido ou discursivo. Quando Hugo se vê num impasse e mostra a casa ao cunhado, ele introduz um incidente com Jean, mostrando a faceta autoritária do personagem, ou ao ser confrontado pelo filho, inclui Sonia na ação, tirando da narrativa o caráter linear, do personagem que conduz a cena. É de um realismo digno dos grandes dramas, em que a queda do patriarca é provocada não pelos outros, mas por suas próprias falácias.

Casa Grande. Drama. Brasil.2014. 115 minutos. Trilha sonora: Patrick Laplan. Montagem: Karen Sztajnberg, Nina Galanternick. Fotografia: Pedro Sotero. Roteiro: Fellipe Barbosa/Karen Sztajnberg. Direção: Fellipe Barbosa. Elenco: Marcello Novaes, Suzana Pires, Clarissa Pinheiro, Thales Cavalcanti, Bruna Anaya, Alice Melo.

– Festival de Paulínia: Melhor roteiro, Prêmio Especial do Júri, Prêmio de Ator Coadjuvante (Marcello Novaes), Prêmio de Atriz Coadjuvante (Clarissa Pinheiro)

– Festival de Toulouse: Prêmio Melhor Filme Júri Popular, Prêmio da Crítica Internacional, Prêmio da crítica Francesa.

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