“Vício Inerente”, afundados na lama

Os EUA dos anos Nixon e Reagan, afundados no caos e na corrupção, são o tema deste filme do cineasta estadunidense Paul Thomas Anderson

A anárquica narrativa em tom farsesco deste “Vício Inerente” tem muito do enigmático escritor estadunidense Thomas Pynchon (V,1988), em que é baseado. Ele nunca se prende a um tema único, vai pinçando aqui e ali para compor um painel de seu país, sem poupar nem classe ou governo. Daí o estranhamento causado pelo caótico ritmo dado pelo cineasta Paul Thomas Anderson (Magnólia, 1999) ao filme, cujos personagens entram e saem da história, numa aparente ligação com a trama e as cenas anteriores.

Pynchon o faz abordar a especulação imobiliária durante o governo estadual de Ronald Reagan (1911/2004), na Califórnia (1967/1975), e o apoio de Richard Nixon (1913/1994) aos grupos direitistas e neonazistas, em sua presidência (1969/1974). Foram nestes anos que o especulador imobiliário Michael Z. Wolfmann (Eric Roberts) se tornou bilionário, expulsando latinos e negros de suas áreas na periferia, para transformá-las em resorts e apartamentos de luxo para a alta classe média.

Este é o fato detonador da ação da trama. A chamada “cidade sem alma”, por seu entrelaçar de viadutos e bairros longínquos, próprios para automóveis. Por ela circulam personagens egocêntricos, frustrados, violentos, viciados, fanáticos. Anderson se vale deles para, usando arquétipos, situações e estética noir, mostrar como os fatos políticos contribuíram para torná-la a megalópole onde policiais, políticos, empresários e promotores se nutrem da mútua corrupção.

Clínica de ricos é protegida por nazistas

A ação se dá em 1969, quando o detetive particular Larry “Doc” Sportello (Joaquim Phoenix) é contratado para descobrir o paradeiro de Wolfmann. E se mete numa teia de fios soltos, em que figuram a chinesa Jade (Hong Chau), empregada de sexshop, o cadáver de seu primeiro suspeito, o irritadiço xerife Christian “Pé Grande” Bjornsen (Josh Brolin), o afro-estadunidense Tariq Kalil (Michael K. Willians), dissidente dos Panteras Negras, e outras vítimas de Wolfmann,

Ainda que desaparecido, ele faz a máquina de corrupção girar através da cúpula da polícia e da Justiça, por meio da promotora-assistente Penny Kimball (Reese Witherspoon). Mesmo Doc mantém íntimas relações com ela, numa tentativa de investigá-la, sem o conseguir. Até desembocar sutilmente numa clínica de recuperação para milionários, guardada por neonazistas, e tudo se desmanche numa frase de Wolfmann sobre suas próprias ambições: “era para tudo ser de graça”.

Esta espécie de anticlimax torna a trama tão intrincada quanto a do bom noir. Ainda mais quando Doc reencontra Shasta Fay Hepwont (Katherine Waterston), sua ex, e relembram o estilo sem compromisso dos anos 60. Isto repõe o mistério da vamp que, uma vez, desaparecida, o faz não para fugir, mas para buscar quem lhe garanta paixão e segurança. E Doc, sempre às voltas com carreiras de cocaína e pacotes de maconha, e o constante perigo, não é um bom parceiro.

Filme tem narrativa em ritmo anárquico

Ordenado deste modo, “Vício Inerente” ganha sentido, por lhe dar um tema central. Ocorre que Anderson, centrado na narrativa de Pynchon, buscou lhe dar uma estrutura anárquica, de humor ácido, que brota das situações absurdas em que se mete Doc. A exemplo da sequência em que o advogado da clínica (Martin Short) ao invés de cuidar da cliente se põe a cheirar carreiras de cocaína. O mesmo ocorre com Bjornsen ao comer o pacote de folhas da cânabis de Doc, deixando-o sem nada.

Às vezes a gag brota de uma frase inesperada, mostrando a sutil veia cômica de Anderson. Ao ser questionado por Doc sobre sua aliança com os neonazistas, Kalil lhe diz que o único ponto em comum entre eles era ser contra o Governo Nixon. A sátira termina por amenizar o realismo e a dureza da situação vivida pelos personagens. Chega a beirar o absurdo.

Mesmo Bjornsen tem seus instantes de abalo ao dizer a Doc que a mídia de Los Angeles não o leva a sério, nem a chefia lhe dá um grande caso para resolver. Até sua companheira vive aos berros com ele. Porém, ele grita com todos e mais com Doc. É um profissional em busca da fama, numa cidade em que o estrelato é o objetivo de quem ocupa cargos importantes ou não. E ele, à espera que Doc o leve às alturas, só consegue esbravejar.

Narrativa atende ao tema central

Já Doc é visto como “hippie”, o que o impede abrir portas e desvendar o caso como devia. Tenta dar a impressão de ter uma ocupação regular, mas falta-lhe o faro e a dureza para tal. Quando consegue é porque lhe chegou por vias tortas. Carece, inclusive, de percepção, como no caso de do escorregadio músico Coy Harlingen (Owen Wilson). Deveria ser recompensado e termina negligenciado.

Em todo o caso, se o espectador tiver paciência e aceitar a entonação farsesca dos atores, Joaquim Phoenix e Josh Brolin, por exemplo, e o ritmo anárquico dado por Anderson ao filme, poderá se divertir e entender um pouco das fraturas sócio-políticas dos EUA. Caso contrário, o verá com uma narrativa confusa e sem sentido. Será uma pena.


Vício Inerente. (Inherent Vice). Drama. EUA. 214. 148 minutos. Montagem: Leslie Jones. Música: Jonny Greenwood. Fotografia: Robert Elswit. Roteiro/direção: Paul Thomas Anderson, baseado no livro de Thomas Pynchon, Elenco: Joaquim Phoenix, Josh Brolin, Katherine Waterston, Reese Witherspoon, Hong Chau, Owen Wilson.

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