“A História da Eternidade”, marcas do atraso

Nordeste matizado pelo diretor pernambucano Camilo Cavalcante desvela a persistência do coronel, do atraso e do novo em forma de tragédia

Numa das belas sequências deste “A História da Eternidade”, o Tio (Irandhir Santos) em performance encantatória entoa em falsete uma ode à solidão e aos deserdados em meio às esmaecidas luzes do miserável vilarejo do agreste pernambucano. E projeta a um só tempo suas angústias e a opressão em que vive por não se deixar corromper. É através dele que o cineasta pernambucano Camilo Cavalcante projeta as contradições entre a persistência do arcaico e a insinuação reprimida do novo.

Ele ousa persistir, entranhando-se no imaginário da sobrinha Alfonsina (Débora Ingrid), de 15 anos, substituta da mãe como cozinheira do pai, fazendeiro e criador de bodes (Cláudio Jaborandy), e dos irmãos. Ela, sim, absorve as mensagens do Tio, a ponto de encarnar a mudança por ele projetada. Seu sonho é ver o mar, que a levaria dali para sempre.

É através deste sonho que Cavalcante, diretor/roteirista, estreante, mostra não o homem, mas a mulher prestes a se deixar possuir pelo novo. É uma imagem poderosíssima. O Tio a conduz pelo agreste, enquanto ouve-se o espocar das ondas, fundindo realismo fantástico, ilusionismo, hipnose e sonho. E a faz ver não o “sertão virar mar/ o mar virar sertão”, numa reversão da célebre frase de “Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), tão só as águas, numa fuga à opressão cotidiana do pai.

Sanfoneiro sintetiza a presença popular

Se a arte do Tio representa a arte elaborada, o vir-a-ser, que visa trazer a consciência, a do sanfoneiro-cego Abelardo (Leonardo França) sintetiza o imaginário popular nordestino. O que ele canta, e também encanta, é nostálgico, relembrando o universo do sertanejo, seus anseios e frustrações. Fala direto a seu espirito, sem mediações, não sendo temido pelo “Senhor dos Bodes”.

Esta instrumentalização da arte, presente não só no uso feito pelos “Senhores dos Bodes” de outras regiões, não alcança as performances do Tio, que não quer o público pelo público. Tampouco falar para a multidão que não o ouve, pois só se deixa embalar. E Abelardo, mesmo tendo a massa diante de si, vê sua arte ser objeto de uso, sem poder sobreviver dela. Significa que o “Senhor dos Bodes” o explora em suas festas, mas não o torna financeiramente independente, pelo contrário.

Vê-se que a arte sutilmente conduz a narrativa. É através dela que Cavalcante apresenta a persistência do arcaico nas relações sócio-econômico-culturais do sertão nordestino deste século 21. Nele sobrevivem o coronel, configurado no “Senhor dos Bodes”, os sertanejos dele dependentes, a Igreja Católica com suas beatas e os jovens cujo futuro continua no Sul. E quando um deles volta, traz apenas seus malefícios.

Mulheres levam vidas restritas

Cavalcante divide seu filme em três capítulos: I – Pé de galinha; II– Pé de bode; III – Pé de urubu, usando os entrechos para encadeá-los, a partir da enorme árvore, onde surgem os personagens. Sempre em planos de detalhes para depois, em grande plano, situar as contradições de classe ou os conflito em curso. Na abertura, Querência (Marcélia Cartaxo) aparece chorando o filho morto. Depois surge apenas a cova rasa em que ele é enterrado, separado dos brancos sarcófagos dos ricos defuntos do lugar.

Querência e sua mãe Das Dores (Zezita Matos) representam as mulheres para as quais a vida se resume à igreja e a enterrar seus mortos. Entretanto, ela, tal personagem saída da tragédia grega, não acha que tenha mais chance na vida. Mas é sua mãe que irá traduzir, como idosa, o quanto a solidão reprime a sexualidade da mulher. A chegada do neto Geraldinho (Maxwell Nascimento), vindo de São Paulo, irá fazê-la retomar o caminho do desejo.

Cavalcante introduz assim variantes do desejo nas relações da Avó com o neto e do Tio com a sobrinha. Enquanto a idosa vive a dualidade repressão religiosa/desejo reprimido, sem poder manifestá-lo, a adolescente não esconde sua atração. Porém em ambas existem fortes inclinações ao incesto. Estão sempre prestes a romper a tênue linha entre o desejo e a concretude. Mas sempre há algo brutal a interrompê-las.

Senhor dos Bodes é anfitrião ruim

Tudo isto ocorre longe dos olhares do “Senhor dos Bodes”, mais interessado na preparação da festa de aniversário da filha. Ele se torna outro, começa a frequentar o bar para atrair convidados importantes, pagando rodadas de cerveja e cachaça, mas não perde o autoritarismo. É o retrato da classe dirigente brasileira que, no seu interesse, revela-se “boa anfitriã” para manter seu poder. Qualquer desvio popular a ameaça.

Assim, com rara contundência, Cavalcante mantém o cinema nordestino representativo do que melhor se produz hoje no país. Uma obra de riqueza pictórica notável, matizada pela trilha sonora do polonês Zbgniew Preisner (A Liberdade é Azul, Krzysztof Kieslowski, 1993) e do brasileiro Dominguinhos, com grande impacto.

“A História da Eternidade”. Drama. Brasil. Pernambuco. 2014. 120 minutos. Montagem: Vânia Debs. Trilha Sonora: Zbgniew Preisner/Dominguinhos. Fotografia: Beto Martins. Roteiro/direção: Camilo Cavalcante. Elenco: Cláudio Jaborandy, Débora Ingrid, Irandhir Santos, Marcélia Cartaxo, Leonardo França.

(*) Prêmio do Público. 38° Mostra Internacional de São Paulo 2014

(**) Melhor Filme, direção, atrizes, ator. 6° Festival de Paulínia – Prêmio da Crítica.

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