Mapas para as estrelas: Terror e egos.

Recalques de infância e terror são usados pelo cineasta canadense David Cronenberg para traçar ácido retrato de uma Hollywood cheia de traumas.

Muitas vezes o que fica de um filme é apenas uma sequência bem construída. Ela sintetiza não só o comportamento do personagem quanto sua função na narrativa. Não é diferente neste Mapa Para as Estrelas. O cineasta canadense David Cronenberg (Crash – Estranhos Prazeres, 1996) e seu roteirista Bruce Wagner bem o constroem na sequência em que Havana Segrand (Julianne Moore) vibra com a desgraça da atriz que a substituiu no papel por ela ambicionado, sem refletir sobre a dor alheia.

Há todo um jogo de bastidores, de tráfico de influência e de torcida para que o outro tropece. Inclusive o sonho com o Oscar. Nenhum glamour emana daí. É tudo visceral, de ganha ou perde, em acirrada concorrência. Cronenberg a expõe com personagens esquizofrênicos, recalcados, frustrados, eivados de traumas de infância. É toda uma galeria de mortos-vivos que brota na tela, tratada no universo do horror soft, doentio, pútrido.

Mas se a geografia é de Los Angeles e os personagens hollywoodianos, o centro do filme são os conflitos familiares, o rancor que deles emerge e suas nefastas consequências. Cronenberg monta dois centros de ação para matizá-los, com sua predileção pelo mórbido, a escatologia, o desejo reprimido, a violência extrema: I – o da contida Agatha Weiss (Mia Wasikowska e seu egocêntrico irmão Benjie (Evan Bird), II – o da atormentada Havana em sua luta para afugentar seus fantasmas.

Clima ditado por terror e violência

Em torno deles gravitam artistas, agentes, diretores, e seus séquitos de terapeutas, assistentes e psicanalistas às voltas não só com suas ambições, mas também para ampliar seus espaços. Nem por isto o ambiente é de sanidade, equilíbrio e solidariedade, tendência natural dos filmes de Cronenberg, nos quais os personagens estão sempre em confronto consigo mesmos (Gêmeos – Mórbida Semelhança, 1988). O que sempre envolve terror e violência extremos.

Estes são mesclas do realismo emanado do cotidiano dos personagens e das projeções subconscientes que ditam seus comportamentos. E fogem ao terror clássico vindo da noite, das catacumbas, dos cadáveres a ganhar vida e atacar os vivos. São seres às voltas com a dor gerada pelo inconsciente, sem capacidade de dominá-la ou sobre ela refletir. Suas reações beiram a loucura, por não separarem a tênue linha entre o real e o projetado.

Agatha traz no corpo as marcas do reprimido, provocadas pela negligência dos pais, Cristina (Olivia Willians) e Stafford Weiss (John Cusack), interessados mais em sua relação, que nos filhos. Notadamente o pai, terapeuta das estrelas, que não percebeu seu desequilíbrio. Ela está sempre oscilando entre o fogo e a água, levando consigo Benjie, de 13 anos. E só quer ser perdoada pelos pais. É uma personagem enigmática, interiorizada, interpretada com minimalismo pela jovem Wasikowska.

Havana quer o lugar da mãe

Não menos complexa é Havana, já cinquentona, solitária, entregue a impasses que procura superar na terapia com Stafford. Ele a mergulha na dor, na autopunição, para apaziguá-la. Porém, surgida em instantes e lugares inesperados, a mãe a atormenta, pois a filha almeja sua respeitabilidade como atriz. E quer interpretá-la na refilmagem de seu filme mais famoso, feito antes de ela morrer, ainda jovem. Obsessiva, Havana só o conquista através da tragédia que a leva ao êxtase.

Através dela, Cronenberg trabalha as contradições da fama, num meio em que a glória é fugaz, bastando um insucesso para perder espaço. Suas pressões para ganhar o papel são exercícios de falsidade, cálculo, manipulação, como em seu choro na sequência com sua agente Genie (Dawn Greenhalgh). Não menos hipócrita é o diretor Damien Javitz, ao assegurar-lhe que pensou nela desde o início da produção, e ela “aceita”.

Seu vértice é o ídolo ator-juvenil Benjie, atormentado pelo coadjuvante Roy que lhe rouba a cena. Não só por isto, sofre da mesma síndrome de Agatha, ao confundir o real com suas projeções. Inclusive ultrapassa os limites da sanidade com Roy. O modo como ele e a irmã encerram seus conflitos com os pais é puro horror, pois usam símbolos da punição e da pureza, fogo e água, para executá-los sem qualquer traço de culpa.

Violência de Agatha beira o paroxismo

Esta estruturação brotada do reprimido, da carência de atenção e afeto, tem outro caráter na sequência em que Havana humilha Agatha. Surge da falta de respeito ao outro, da atriz para com sua assistente. Beira o paroxismo. Lança sobre ela a carga de ódio da mãe, numa saraivada de impropérios desmensurados. E recebe de volta a extrema violência da garota tão reprimida quanto ela. Dá para sentir o visco do sangue.

Embora com estas virtudes, falta rigor e melhor estruturação das sequências do filme. Chega a ser frouxo, um lapso em se tratado de Cronenberg. Com dois eixos que se fecham no desfecho, tem vários fios que, uma vez cortados, dariam mais consistência à narrativa. Mesmo assim, uma obra não desprezível, pelo que contém de realidade-ficcionalizada.

Mapa Para as Estrelas. (Maps to the stars). Drama. Terror. Canadá, EUA, Alemanha, França. 2014. 111 minutos. Edição: Ronald Sanders. Música: Howard Shore. Fotografia: Peter Suschitzky. Roteiro: Bruce Wagner. Direção: David Cronenberg. Elenco: Julianne Moore, Mia Wasikowska, Olivia Willians, John Cusack, Robert Pattinson.

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