Memória do holocausto

Ele sentou-se na cadeira de uma das mesas para abrigar-se da chuva. A chuva ajudou-o a manter o disfarce. Com pouco mais de um metro e meio de altura, ainda com os cabelos fartos de fios pretos e grisalhos, é difícil para ele manter um disfarce. Já tem 68 anos e o desleixo desproveu-o da arcada dentária superior.

Crescera obedecendo a ordens; mesmo depois dos vinte e cinco anos, convencera-se de que cumprir com a disciplina, inda que vazia de razões, seria o único meio de amadurecer a cidadania. Morando sozinho, aposentado, tirando proveito do aluguel de meia dúzia de apartamentos de sua propriedade, carece de companhia para conversar. Mas sabe que a vizinhança não lhe dá ouvidos porque, com o palavreado inchado de mentiras para compensar-se da pequenez do tamanho, ninguém acredita no que diz.

Assim, Durval Pacheco sentou-se queixando-se da chuva, numa das mesas desocupadas. O temporal engrossou. Os pingos na coberta externa de alumínio do bar, zumbiam feito balas ricocheteando. Ele não se amofinou; olhou para a rua e acreditou que também a natureza se acumpliciara com seus propósitos. Levantou-se de onde estava e sentou-se noutra cadeira, numa das mesas já ocupadas. A explicação seria curta. O jorro abundante saiu-se como a alforria para juntar-se até a estranhos.

– Se depender de mim você não pega uma gripe – disse o outro. Durval Pacheco, para ele, não era tão estranho.

– Não me lembro de quando peguei uma gripe. Já faz mais de quarenta anos.

É a primeira mentira – pensou o outro. Durval Pacheco tinha informações de Maneco Simões; sabia-o, embora com imprecisões, um comunista que fora perseguido por militares.

– A última vez que fui forçado a ficar sob um temporal forte, foi quando fiquei de tocaia no mato.

– Em treinamento?

– Cumprindo ordem!

Maneco Simões quis olhá-lo de cima a baixo. Mas a pouca estatura do homem permitiu somente perscrutá-lo da cintura para cima. Fitou a testa vincada. Viu que o homem queria dar conta de um sentimento pouco comum em seu juízo.

– Sim, cumprindo ordem. Os camponeses vinham na direção do engenho. Vinham para ocupar o engenho. Nós estávamos escondidos numa mata de eucaliptos, por trás dos troncos. Antes que entrassem na porteira do engenho, veio a ordem de atirar.

– Sobrou algum?

– Não sei. Nós atiramos e depois saímos na caminhonete que tinha ficado por trás do morro.

A chuva não deu trégua. Logo, outro automóvel estacionou em frente ao bar. De dentro saiu o colega de Durval Pacheco. Usando bermuda, camisa de algodão liso, só uma cor, verde desbotado. Na cabeça, um chapéu de campanha usado pelo exército, com a aba toda arriada. Sentou-se ao lado de Pacheco, tirou o chapéu da cabeça, mostrando a calvície. O nariz aquilino, a testa alta, o rosto barbeado com apuro, tudo no recém-chegado tinha o perfil de Mussolini.

Não cumprimentou, posto que o certo, conforme ele, seria mostrar-se familiar, com desembaraço para expor-se.

– Você não tem nada do que se arrepender por ter metralhado camponeses. Viu o que aconteceu no dia 15, na Avenida Paulista? Carlinhos Metralha falou no microfone e foi aplaudido. Na frente de um milhão de pessoas.

Pacheco soubera dos gritos pedindo a volta dos militares. Olhou para Maneco Simões, conhecendo suas antipatias a fascistas. Riu contrafeito, entrevendo também um traço de bonacheirice na paciência que seu rosto exibia.

Com o temporal entrando na noite, a rua cobrira-se de lama, poças largas. Durval Pacheco quis ir para casa. Mas a espessura vermelhosa da lama vizinha à margem da calçada, remeteu-o ao lamaçal da estrada rumo à porteira do engenho. Lá, tivera a certeza, os primeiros disparos de sua metralhadora abateram dois homens com chapéu de palha na cabeça. Ele riu.

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