“Leviatã”, descarnadas carcaças
Entre símbolos e realidade, filme do cineasta russo Andrei Zviaguintsev dá conta das nebulosas ligações do poder e de sua capacidade de destruição
Publicado 25/03/2015 17:59
Longe das metáforas e esteticismo de Aleksandr Sukorov (A Arca Russa, 2002) e das tentativas de Serguei Soloviev (A Pomba Branca) de captar a Rússia perdida, o cineasta russo Andrei Zviaguintsev prefere mergulhar nas contradições russas de hoje. Não o faz com esquematismo ou maniqueísmo, que redundaria numa abordagem manipuladora sobre a corrupção na cidadezinha pesqueira de Pribrezhny, no mar de Barents, norte do país.
Seu filme, Leviatã, é um drama político que passeia pelas tramas policiais, sem perder a matização geográfica e a tipificação dos personagens, como criação da Rússia capitalista. Enfim, trata do conflito entre um mecânico e a burguesia russa, brotada do pós-Socialismo Real, louca para acumular capital, pelas vias da corrupção, da qual brota seu filhote: o crime organizado.
Isto em si não é novidade. O que importa é a maneira como Zviaguintsev encadeia os entrechos do filme, para, numa variação narrativa, passar do tema político para o policial, do social para o amoroso e deste para o político-religioso. Eficiente recurso para envolver as camadas sociais e a estrutura de poder, destacando a Igreja Cristã Ortodoxa como amortecedora dos conflitos entre ricos e deserdados.
Kolya é vítima de ardil político
Zviaguintsev se vale da contribuição de Sergei Eisenstein (1898/1948. O Encouraçado Potemkin, 1925) para a linguagem cinematográfica, ao agilizar sua narrativa. Logo na abertura, através das cinzentas ondas revoltas e gigantescas pedras, o clima opressivo se impõe. E surge a recorrência metafórica do esqueleto da baleia largada na praia e velhos barcos e lanchas encalhados na praia, na contraditória permanência do velho e a estagnação do novo.
Percebe-se que ele não quer apenas contar uma história, fazer uma denúncia sobre a corrupção na Rússia, mas dar conta de seu tema num ambiente adequado: a luta do mecânico Kolya (Alexei Serebriakov) para manter a casa herdada do pai, de frente para o mar. Para se reeleger, o prefeito Vadim Shelevyat (Roman Madianov) desapropriou-a por valor inferior ao que vale e, tendo o judiciário e a polícia sob controle, manteve a decisão.
No entanto, por trás de sua decisão está um poderoso grupo econômico, interessado em construir um resort no terreno, destinado a turista de alto poder aquisitivo. Kolya que vive com Lilya (Elena Liadova), sua segunda companheira, e o filho adolescente Roma (Sergei Pokhodaev), busca em Moscou o “advogado” Dmitry Mikhailovich (Vladimir Vdovichenkov), para defendê-lo. Logo se percebe seu jogo numa busca cada vez mais perigosa.
Triângulo amoroso remete ao noir
Como nos filmes noir, Lilya se torna o vértice do triângulo amoroso, que irá unir crime, paixão e traição. Esta tortuosa relação torna Dmitry no fator desestabilizador da vida do casal Kolya/Lilya, mostrando o quanto a existência dela é insatisfatória e infeliz. E desperta a ira de Roma, que sempre viu nela a usurpadora do espaço de sua falecida mãe.
Dmitry, embora se declare advogado, foi mandado por Moscou para quebrar a espinha do rebelde Vadim. Sempre se refere a Ivan Kostrov, do Comitê Kostrov, o que faz tremer o prefeito. É neste instante que Zviaguintsev acrescenta o vértice do poder político/poder religioso, na figura do bispo da Igreja Cristã Ortodoxa, amigo e guia de Vadim.
Sua fachada para mostrar-se religioso, no estilo estar com o povo, lhe garante proeminência e respeitabilidade. Ele, porém, numa conversa com o filho pequeno lhe diz: “Deus vê tudo sempre”, atestando o quanto desdenha os preceitos da Igreja. Diferente de Kolya, que ao ser questionado pelo padre Vasily, por não frequentar a Igreja, lhe indaga: Por acaso evitaria o que me aconteceu?
Miséria de um riqueza do outro
Com estas construções, Zviaguintsev desencadeia uma série de incidentes com desembocam na ruína do casal Lilya/Kolya e termina numa tragédia. Mostra que a corrupção, ao entranhar-se na sociedade, penaliza os mais frágeis. Trata-se de um efeito conexo: riqueza de um, miséria do outro. Este é o lado elogiável do filme. Mesmo assim, Leviatã não é um filme progressista, no sentido da resistência da família Kolya. Torna-se, inclusive, anticomunista na emblemática sequência do tiro ao alvo.
Talvez para abrandar as resistências ao filme em seu país, Zviaguintsev critica a ex-URSS, pondo Stalin, Lenin, Gorbachev e Brejnev como alvo das espingardas. Fez as delícias da crítica burguesa por identificá-lo como anti-Putin. Justo no momento em que EUA e União Europeia tentam isolar o país por sua posição contra a intervenção deste bloco em seus fronteiras, casos da Criméia e Ucrânia, e de sua oposição às tentativas de invasões da Síria e Irã e dos ataques de Israel à Palestina. Não se deve agradar a todos os santos, vela demais assusta.
Leviatã. (Leviathan). Drama/Policial. Rússia. 141 minutos. 2014. Edição: Anna Mass. Fotografia: Mikhail Krichman. Roteiro: Oleg Negin/Andrei Zviaguintsev, Direção: Andrei Zviaguintsev. Elenco: Alexei Serebriakov, Elena Liadova, Vladimir Vdovichenkov, Roman Madianov, Sergei Pokhodaev.
(*) Melhor Roteiro Festival de Cannes 2014, Melhor Filme Estrangeiro Globo de Ouro 2015, Prêmio da Crítica: Melhor Filme Festival de São Paulo 2014, Melhor Filme do Ano, Melhor Filme Estrangeiro, do Círculo dos Críticos de Cinema de Londres, 2015.