“Birdman, Ou A Inesperada Virtude da Ignorância”, máquina de egos

Filme do cineasta mexicano Alejandro G. Iñárritu opõe a cultura de massa à “grande arte” para expor dilemas de ator em crise de meia idade

Uma das qualidades deste “Birdman, Ou A Inesperada Virtude da Ignorância” é fugir às armadilhas da história linear. Usa de diversos recursos narrativos, inclusive fluxo de consciência, flashbacks e subtramas para dar conta do drama do ator Riggan Thomson (Michael Keaton), que em crise de meia idade decide montar na Broadway a peça do escritor estadunidense Raymond Carver (1938/1988) “O Que Falamos Quando Falamos de Amor”, como ator, produtor e diretor.

Mas ao longo do filme o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu (Amores Brutos, 2000) usa o dilema de Riggan para discutir a dualidade cultura de massa/cultura de elite na sociedade estadunidense. O faz introduzindo como antagonista o prestigiado ator de teatro Mike Shiner (Edward Norton), opondo assim os gêneros cinematográfico e teatral.

Riggan tornou-se ídolo da cultura de massa com a franquia Birdman, que se lhe deu fama, mas não o prestígio desejado. Láurea que não falta a Mike, acostumado a bons papéis e a sofisticadas plateias. O conflito entre eles se torna um embate de egos e trapaças, mostrando a resistência de certa elite teatral à quem participa de superproduções hollywoodianas. Daí a Broadway, centro de prestígio teatral nos EUA, lhe ser vedada.

Propaganda e quadrinhos usam deuses e sagas

Não menos visceral é a imagem que Iñárritu faz da mídia cultural dos EUA, ao levar o repórter a citar Barthes numa coletiva com Riggan: “As obras culturais criadas no passado por deuses e sagas épicas são feitas agora por anúncios de sabão e personagens dos quadrinhos”. A frase sintetiza os heróis das superproduções, ao mostrar que publicidade e quadrinhos se utilizam deles para identificá-los com produtos de consumo e substituírem mitos e deuses.

Em várias sequências, o super-herói Birdman surge como alter ego de Riggan, refletindo seu subconsciente em conflito. No entanto, quando o público lhe pede autografo na rua, ele se sente recompensado. Desta forma, a visão do super-herói ganha outro significado. No capitalismo em decadência de valores, transição de liderança entre nações, longa crise econômico-financeira, os espectadores se projetam nos super-heróis, por lutarem contra os “vilões que querem dominar o mundo”.

Daí se sentirem recompensados quando eles derrotam os vilões em nome da ética e da moral almejadas. Entretanto, na vida real, nada disso ocorre. Os “vilões” escolhidos política e ideologicamente, casos de árabes, africanos e asiáticos, são combatidos pelos super-heróis que representam as elites burguesas imperialistas, que os usam, aí sim, para dominar o mundo. E se ocultam na cultura de massa, onde não são tratadas como reais vilãs, sim cheias de boas intenções.

Riggan é dominado pelo misticismo

Riggan é um personagem místico, metafísico. Prática levitação, faz reflexões transcendentais e projeções do subconsciente. Seus voos sobre ruas e prédios de Nova York refletem sua necessidade de evasão, causada pela pressão do sucesso e seus conflitos com as mulheres de sua vida, e a filha Sam (Emma Stone), em recuperação de dependência química.

Ele entra em situações inusitadas, iguais ao disparo em pleno palco diante da plateia, ou correndo de cueca pelas ruas e entrando pelo teatro, sem se desconectar da ação no palco, verdadeiro personagem do teatro do absurdo. Mas se humaniza num terno abraço com Sam, ao vê-la ter uma recaída no vício.

No entanto, reage ao ser depreciado por Tabhita Dickinson (Lindsay Duncan), crítica de teatro do New York Times, que o ameaça, dizendo-lhe: “Vou arrasar sua peça. Você não tem o direito de vir aqui dirigir, produzir e interpretar”. Ele então pega as anotações dela, gritando:”Você rotula tudo. Não fala nada da estrutura (da peça). É preguiçosa, não arrisca nada”.

Iñárritu faz ácida crítica à mídia

A ácida reação de Iñárritu à mídia cultural dos EUA não se restringe à crítica. Avança para a repórter que numa coletiva pergunta a Riggan:”É verdade que injeta sêmen de leitão em si mesmo, como método de rejuvenescimento facial?”. Ele nada responde. Ela nem sabia da existência do filósofo estruturalista francês Roland Barthes (1915/1980), autor do Império dos Signos (1970). Isto atesta o nível da mídia cultural, que vive enredada em clichês e estigmatizações, que em nada ajudam o espectador.

Mesmo assim Birdman não é um filme hermético, pelo contrário, Iñárritu usa de técnica apurada para driblar a linearidade. Suas variações narrativas se limitam às subtramas dos encontros de Sam com Mike no topo do teatro e de Mike e Lesley (Naomi Watts) em ríspidas discussões no palco. Não bastasse, o desfecho é um primor de evasão, quando Riggan voa e Sam pensa o contrário. Ela volta-se para a câmera e apenas sorri. Uma bela elipse.


“Birdman Ou a Inesperada Virtude da Ignorância”. (Birdman. The Inexpected Virtue Of Ignorance). Drama. EUA. 2014. 119 minutos. Edição: Douglas Crise/Stephen Mirrione. Música (Percussão): Antonio Sanchez. Fotografia: Emmanuel Lubezki. Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Nicolas Giacobone, Alexandre Dinelaris Jr. e Armando Bo. Direção: Alejandro G. Iñárritu. Elenco: Michael Keaton, Edward Norton, Emma Stone, Naomi Watts.

(*) Oscar 2015: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia.

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