O rearranjo de classes da modernidade pode dificultar para a direita

O ensaio que serve de introdução ao livro O sentido do lulismo – reforma gradual e pacto conservador, de André Singer (São Paulo, Cia das Letras, 2012), resulta de um importante esforço de compreensão da mudança profunda que ocorre no comportamento político das classes sociais no Brasil desde o início da “era Lula”.

Ele analisa, sob o título de “Alguns temas da questão setentrional”, de inspiração gramsciana, as razões do ritmo lento das mudanças sociais no Brasil e sua particular mistura entre o anseio pelas reformas e o renitente conservadorismo.

Há uma reflexão necessária antes de se entrar na argumentação de André Singer. As mudanças históricas são lentas no Brasil. Isso talvez decorra, entre utras coisas, da dimensão continental do território que sempre permitiu para a população pobre a existência de oportunidades alternativas de sobrevivência em face das dificuldades impostas pela vida. Num território imenso sempre foi possível ao povo pobre e livre buscar seus precários meios de vida em outros lugares. Um exemplo são os posseiros no sertão de São Paulo cujo conflito com latifundiários e grileiros, desde a época da Independência (no século 19) foi descrito, entre tantos outros autores que tratatram da questão, por Warren Dean no livro Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820/1920 (Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1977).

Eles se instalavam na fronteira agrícola, desbravavam parte da floresta e lá ficavam até serem expulsos pela expansão latifundiária. Partiam então em busca de outras terras onde repetiam o processo numa precária e insólita “válvula de escape” para os conflitos sociais – que, aliás, nunca deixaram de ocorrer, como mostra nossa cruenta história da luta de classes que, só no período republicano, vai desde Canudos, no final do século 19, até a Guerrilha do Araguaia, na década de 1970.

Aquele processo de migração em busca de novas terras se manteve, a rigor, até tardiamente, em época de industrialização avançada, em meados do século 20.

A intensa migração que levou brasileiros do Nordeste em direção ao Sul industrializado pode ter sido uma versão em escala multiplicada da mobilidade espacial ocorrida desde séculos anteriores.

Celso Furtado foi pioneiro ao indicar este traço do arranjo social brasileiro e suas consequências políticas e econômicas. A grande reserva de força de trabalho para o desenvolvimento nacional tem sido o campo, sobretudo o Nordeste, de onde partiram legiões de migrantes (principalmente depois da década de 1930, no período áureo da industrialização) para servir como mão de obra barata e superexplorada nas regiões industriais. Era no campo que estava concentrado o subproletariado (como Paul Singer chamou a essa fração do proletariado) que esteve na base da estrutura de classes brasileira.

Esta estrutura de classes se move lentamente e, neste início do século 21, revela uma alteração profunda no sentido de sua modernização efetiva, como indicou o ensaio seminal de André Singer.

Ele inspirou-se em Antonio Gramsci para descrever o “deslocamento de classes” que ocorre no Brasil desde 2005-2006. Constatou uma semelhança entre aquilo que Gramsci chamou de “questão meridional” e o arranjo de classes ocorrido no Brasil desde 1930. Gramsci descreveu o “monstruoso bloco agrário” formado no sul da Itália pela fusão entre camponeses e latifundiários intermediado pela camada de intelectuais (padres, professores, jornalistas e outros profissionais liberais formadores de opinião), e que se tornou o guardião do capitalismo industrial do norte e dos grandes bancos.

No Brasil arranjo semelhante pressupôs a aliança, pelo alto, entre latifundiários (com destaque para as oligarquias nordestinas) e industriais, banqueiros e representantes do imperialismo instalados principalmente no Sudeste industrializado. Na base estava o povo pobre, prncipalmente no Nordeste mas também na periferia pobre das grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Povo pobre que, submetido pelo voto de “cabresto” e outras maneiras de manipulação eleitoral, permitia a garantia da estabilidade do sistema político. E cuja existência favorecia a acumulação de capitais ao pressionar para baixo o preço da força de trabalho, mantindo sempre no limiar da miserável sobrevivência do trabalhador.

A grande contribuição do ensaio de André Singer foi o reconhecimento do realinhamento entre as classes ocorrido no Brasil, que se tornou visivel na eleição presidencial de 2006.

Pode se dizer que este rearranjo entre as classes começou a ocorrer desde a crise da ditadura militar, na primeira metade da década de 1980. A emergência do projeto neoliberal e sua ênfase na especulaçlão financeira colocou na pauta política a questão da chamada crise do Estado e sua alegada incapacidade para realizar investimentos na produção e promover gastos sociais.

A proliferação, no debate público (principalmente na imprensa do Sudeste), da denúncia do atraso das oligarquias agrárias, com destaque mais uma vez para as nordestinas, foi um indício claro do início da ruptura, pelo alto, do arranjo de classes que vinha desde o início da “era Vargas”. Rearranjo que trouxe embutida a contraposição entre o Sudeste “branco” e “desenvolvido” (capitalista) e o Nordeste “mestiço” e “subdesenvolvido” (pré-capitalista).

Era a crtise na “questão setentrional”, como André Singer sugeriu chamá-la. Crise que trouxe a possibilidade de emergência do governo democrático e nacional de Luis Inácio Lula da Silva, na linhagem dos grandes mudancistas como José Bonifácio, Getúlio Vargas e João Goulart. Que tem, em sua esteira, o realinhamento de classes identificado por André Singer e visível desde a eleição de 2006.

Esse realinhamento sinalizou o rompimento do bloco que envolvia a população pobre com políticos das oligarquias tradicioionais, principalmente no Nordeste mas também nas periferias miseráveis das grandes metrópoles.

Em 2006 “ocorreu o duplo deslocamento de classes que caracteriza o realinhamento brasileiro e estabeleceu a separação política entre ricos e pobres” (p.15), diz André Singer. A política social “voltada para os mais pobres”, com reflexos sobre o mercado de trabalho e as relações de classe, iniciou “desde 2005-2006 uma polarização entre ricos e pobres que escapa ao terreno comum de um possível liberal-desenvolvimentismo pois ela opõe de maneira consistente os que desejam maior intervenção estatal aos que preferem soluções de mercado” (p. 30).

As viuvas do velho arranjo de classes, os órfãos da “ questão setentrional”, acusam Lula, o Partido dos Trabalhadores e a esquerda de dividir o país e opor ricos contra pobres, Nordeste contra Sudeste, partido contra partido.

É o que faz o ideologo da direita Marco Antonio Villa no artigo “O Brasil não tem medo do PT” (O Globo, 03/03/2015). Ele lamenta o fim do velho arranjo que mantinha o povo subordinado à mesma velha elite que sempre dominou o país e percebe, ao menos, que aquela decadente elite direitista enfrenta hoje dificuldades muito maiores na luta pelo poder. Compara o impeachment de Collor em 1992 (quando o pacto da “questão setentrional” ainda sobrevivia) à tentativa atual de afastar Dilma Rousseff, Lula, o PT e a esquerda do cenário político.

É preciso reconhecer que, neste ponto, ele tem razão. O rearranjo de classes visível no Brasil desde 2005-2006 tende a aprofundar-se e a se definir mais claramente, separando de um lado o proletariado que vive da venda de sua força de trabalho, a burguesia que compra aquela força de trabalho, e opondo estes dois setores produtivos aos parasitas que vivem de especulações improdutivas no mercado financeiro.

É um processo social e político, um processo histórico, vivido pelos brasileiros que ocorre próximo da comemoração dos 200 anos da Independência (que ocorrerá daqui a sete anos, em 2022). Ele indica que o país completa sua revolução nacional e democrática, fortalece a soberania nacional e luta contra os setores financeiros aliados do imperlialismo (como foram, no passado, do colonialismo) que sempre infelicitaram a nação tendo sido os principais fatores do atraso e da instabilidade política.

O Brasil vive a proximidade de grandes embates democráticos e patrióticos. Eles ocorrerão em uma estrutura de classes que se moderniza e no contexto da conquista de novas perspectivas cuja vitória será alcançada pela união do povo, das forças democráticas e patrióticas, das organizações populares, sindicatos e partidos avançados.

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