Um poema à beira-mar

O encalorado capitão-mor Estácio de Sá vislumbrou entusiasmado uma várzea recheada de árvores ao se aproximar daquela enorme baía. Com sua longa barba, aprumou-se na proa da nau e sonhou ali, entre o maciço do Pão de Açúcar e o morro Cara de Cão, com cidade que ali surgiria: São Sebastião do Rio de Janeiro.

Resultado de renhida luta, envolvendo interesses de outras nações, dividiu em diferentes alianças os povos indígenas. Era, há 450 anos, a segunda do Brasil. Morre Estácio de Sá, vem a cidade, hoje uma metrópole de incontáveis sensações.

Não há um canto sequer do Rio que não exale paixão, beleza e alegria. Mesmo onde a desigualdade social mostra sua cara sem pudor, há o amor e a garra de lutar por uma vida melhor. É contagiante. Não há ninguém que não se encante pelo sol que descansa no mar ou nos morros de Campo Grande. Não há sequer um carioca – dos que aqui nascem aos adotados pela cidade – que não beije o ar das noites na mureta da Urca, nos botequins da Tijuca ou nas calçadas do subúrbio carioca.

Certamente o Rio é uma cidade para se conhecer e amar, não só pela ardência do deslumbre, mas pela vida que aqui pulsa num ritmo incomparável.

A cidade também é berço e receptora de uma pluralidade cultural que a torna ainda mais rica. A diversidade que pulsa dos becos da Lapa, do jongo nos quilombos históricos, do samba e do chorinho, do forró nordestino, do funk e do rap urbanos, da arquitetura e da arte na rua, do sincretismo religioso, todos embalados pela capacidade criativa, reforçam o sentido de valorizar as diferenças, universalizar e democratizar a cidade. Reinam assim os traços de uma profunda mistura que pincela o rosto do Rio como uma comunhão de cores, etnias, religiões, cabelos, sotaques, roupas e tendências comportamentais. E ainda há as marcas africanas e obras desde o Brasil-Colônia, Império e República reveladas à luz do dia nas ruas e vielas, nos morros ou no interior de mosteiros, museus e prédios públicos. O Rio é cultura.

Mas a junção de tantos elementos sociais e culturais, que ora se cruzam em harmonia, a ponto de se confundirem, também é palco de contrastes. A vida no asfalto ainda é quilômetros-luz distante economicamente do morro, mesmo que residam geograficamente a poucos metros um do outro. A violência também dilacera famílias quase como rotina, seja pelo descompasso da polícia, do Estado e da criminalidade, seja pelo tráfico de drogas.

Nem todos têm onde morar. O deficit habitacional da cidade, agravado pelo encarecimento dos exorbitantes aluguéis, é um dos maiores do País. Estima-se a necessidade de mais de 300 mil unidades residenciais populares. Este direito constitucional ainda não é garantido, apesar do avanço de programas habitacionais, excluindo e marginalizando milhares de cidadãos do direito de ter um teto, endereço e CPF.

O transporte público é ruim e tem a missão de atender uma população fixa de 6 milhões de pessoas, sempre sufocadas pelos serviços precários. Ônibus e trens encaixotam seus usuários sem ar-condicionado, com funcionários mal remunerados e estressados, numa profusão de incontáveis aborrecimentos. Não há um carioca sequer que não tenha sentido revolta ou perdido as “estribeiras” na linha 383, do Centro à Realengo.

Chegar aos 450 sem crise é praticamente impossível, reconhecer avanços também é necessário, mas a meta deve ser a de perseguir a cidade inclusiva, ambientalmente sustentável e com serviços básicos universalizados com o desenvolvimento econômico e urbano. Permitir que milhares de sonhos venham à tona é um desafio urbano moderno e solidário.

Os problemas existem soltos, numa cadência que precisa ser superada com urgência pelos poderes públicos envolvidos. Planejamento e ações efetivas para concretizar esta meta é o melhor presente que a cidade pode receber. Um presente para os cariocas de corpo, coração e alma. Porque "não tem tira, nem doutor, nem ziguizira, quero ver quem é que tira nós aqui desse lugar".

Parabéns, Rio!

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