Selma, Uma Luta pela Igualdade”, endêmica segregação

Filme da cineasta estadunidense Ava DuVernay sobre Martin Luther King Jr atualiza a luta dos afro-estadunidenses contra a segregação nos EUA

Menos controverso política e ideologicamente que o socialista-muçulmano Malcolm X (1925/1965), seu contraponto no Movimento pelos Direitos Civis nos EUA nas décadas de 50 e 60, o pastor batista e ativista político Martin Luther King Jr (1929/1968) surge neste “Selma- Uma Luta pela Igualdade” com a imagem revigorada. A cineasta afro-estadunidense Ava DuVernay e seu corroteirista Paul Webb dotam-no de visão de grande político e estrategista.

Afinal, sua imagem é de um líder que, mesmo defendendo a desobediência civil e a não-violência, não desafiava o sistema capitalista e dizia que os EUA estavam enfrentando o comunismo soviético (1922/1991). Mas DuVernay estrutura seu filme de modo a mostrá-lo como um dos líderes do Movimento de Direitos Civis, que enfrentava os segregacionistas do Sul dos EUA com lucidez, coragem e firmeza.

Sua visão da luta advém do estadunidense Henry David Thoreau (1817/1862), filósofo, e do alemão W.F.Hegel (1770/1831), idem, e do líder da independência da Índia e mentor da não-violência Mohandas K. Gandhi (1869/1948). E principalmente de sua experiência como teólogo e pastor da Igreja Batista, de Montgomery, Alabama. O que lhe deu profunda compreensão de seu povo e das leis segregacionistas do Sul dos EUA.

Johnson protela a reivindicação do SCLC

No entanto, DuVernay preferiu centrar a narrativa em sua estada na cidadezinha de Selma, no Alabama, um dos estados mais segregacionista do Sul. E divide a narrativa em dois núcleos de ação: nas manifestações lideradas por King Jr e nas tentativas do presidente Lyndon Baines Johnson (1908/1973) de protelar as reivindicações da SCLC (Conferência da Lideranças Cristã do Sul), por ele presidida.

Isto permite a DuVernay tratar as ações de King Jr nos níveis de ação política, como reuniões para organizar manifestações de rua, avaliar perseguição e violência policial e pressionar o às vezes vacilante Lyndon Johnson. Mostra assim que ele, King Jr, não considerava a manifestação em si uma solução, precisava ser completada pela ação política sobre quem realmente decide, ou seja o presidente dos EUA.

Para bem expor sua narrativa, DuVernay opta por enquadramentos precisos, grande planos, que situam as forças em confronto e o espaço onde ele se dá. Ou seja, em ruas apertadas, pequenos bares, becos, pontes sem opções de fuga, que dão sensação de asfixia e horror. E exige sobretudo a contenção dos atores, insinuando fragilidade e temor, diante da truculência policial. Isto cria tensão constante e solidariedade com os ativistas.

King Jr se insurge contra a omissão

O resultado é um filme tenso, cheio de ação, e sermões de King Jr, que sintetizam seu estado psicológico, notadamente ao acusar os brancos segregacionistas, o governador democrata do Alabama, George Wallace,1919/1993 (Tim Roth), a Ku Klux Klan e inclusive os afro-estadunidenses que se omitem diante da segregação. “Todos são culpados, todos…”. É nestes momentos que ele culpa Johnson por não abolir a inscrição para votar.

Esta forma de construir a narrativa, usando múltiplos centros de ação, faz com que DuVernay ateste o quanto Steven Spielberg foi reducionista ao atribuir unicamente a Abrahan Lincoln (1809/1865) a iniciativa pela abolição da escravatura nos EUA, após a Guerra da Secessão (1861/1865). A vitória pela Lei dos Direitos ao Voto, sancionada por Johnson em 06/08/1965, não é de King Jr, mas do Movimento pelas Liberdades Civis, cujas vertentes eram lideradas por ele, Malcolm X e os Panteras Negras.

Além disso, DuVernay não omite as manipulações de Johnson, que usa o ultraconservador chefe do FBI, John Edgar Hoover.1895/1972 (Dylan Baker) para instalar escutas na casa de King Jr. E deixa no ar a responsabilidade pela bomba atirada contra sua casa, que quase mata sua companheira Coretta Scott e seus filhos. Mas mostra o embaraço dele, King Jr, quando ela lhe indaga sobre supostas aventuras extraconjugais.

Segregação parece endêmica nos EUA

Não bastasse, DuVernay também enfrenta outra questão polêmica: a conflituosa relação de King Jr com Malcolm X, que adotara o nome muçulmano Al Hajj Malik Al-Habazz. E critica Coretta por ter recebido o desafeto. As opostas visões de organização de seu povo para livrá-lo da segregação havia lhes afastado. Al-Habazz defendia a revolução socialista e a criação de uma nação independente em território dos EUA para tirar os afro-estadunidenses do jugo capitalista, enquanto King Jr, na visão de Malcolm X, não questionava o sistema que os segregavam.

Embora DuVernay não trate desta questão em seu filme, a validade dele está em ser lançado no momento em que inúmeros afro-estadunidenses foram assassinados por policiais nos EUA, mantendo o clima de confronto racial dos anos 60. O que confirma a visão do diretor Joseph L. Mankiewicz (1909/1993) em “O Ódio É Cego” (1950), de que o racismo está entranhado no inconsciente anglo-saxão estadunidense. Parece endêmico.



Selma.
Uma Luta pela Igualdade. (Selma). Drama. EUA/Reino Unido/Irlanda do Norte. 2014. 128 minutos. Montagem: Spencer Avenck. Fotografia: Bradford Young. Roteiro: Ava DuVernay/Paul Webb. Direção: Ava DuVernay, Elenco: David Oyelowo, Carmen Ejogo, Tom Wilkinson, Tim Roth.

(*) Oscar 2015. Candidato a Melhor filme e Melhor Canção.

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