Ida”, fugindo da vida

Cineasta polonês Pawel Pawlikowski usa o extermínio de família judia na 2ª Guerra Mundial para refletir sobre os rumos de seu país e a falta de perspectivas

Entender a proposta central de um filme apenas pelo que se vê na tela pode ser uma armadilha. Principalmente quando remete a tema complexo como o extermínio de judeus poloneses durante a 2ª Guerra Mundial (1939/1945), mas discute a Polônia atual. E é tratado como a luta de duas judias para localizar onde sua família foi enterrada 20 anos atrás, em plena ocupação do país pelos nazistas.

Afinal são duas mulheres remexendo num baú de najas, quando há um véu cinzento a encobrir o passado, nada lisonjeiro. Notadamente porque as autoridades que deveriam tratar o caso com responsabilidade preferem prender uma delas, por desacato e perturbação à ordem. Assim, “Ida”, do cineasta polonês Pawel Pawlikowski, passado nos anos 60, em preto e branco, cheio de criativas elipses e clima opressivo, ganha em interesse, mistério e suspense.

No entanto, ao pôr a ex-juíza Wanda Cruz (Agata Trzebichowska) e sua sobrinha, a noviça Anna (Agata Kulesza), nesta instigante busca, está fazendo um acerto de contas com o passado e tratando da perda de poder pelos comunistas durante a Queda do Leste Europeu. E a situação em que Wanda se encontra bem o simboliza, pois lhe restou apenas a memória de um passado que ainda a estimula.

Cidadãos comuns também executaram

A investigação por ela conduzida leva-a a desvendar o que ocorreu com sua irmã Róza, o cunhado e o sobrinho, ainda criança, e com a própria Anna. Não pelas tropas nazistas, mas por camponeses, vizinhos de sua família, que se valeram da perseguição aos judeus para se apropriar de suas propriedades. Fizeram parte, assim, dos três milhões de judeus que, junto com outros 2.850 milhões de poloneses, foram executados naquele período.

A ousadia de Pawlikowski está em abordar tal fato, numa época em que ainda não se enfrentou na Alemanha, na França, na Itália e outros países europeus a responsabilidade dos cidadãos comuns, a maioria silenciosa, pelo extermínio 5.754.400 milhões de judeus, e de milhões de comunistas, resistentes e trabalhadores. Na Polônia morreram 160.000 soldados e 2.440.00 milhões de civis. E em toda a 2ª Guerra Mundial 59.604.600 milhões, dentre eles 26 mil soldados e mil civis brasileiros.

Em duas sequências, Pawlikowski dá conta de seu tema: I – na negociação de Wanda com o filho do velho Marek, para que ele revele o que aconteceu com sua família; II – na frieza com que o camponês, enfim, retira de si a carga pelos assassinatos e ela se livra do mistério. Seu alívio poderia ser o de uma família brasileira, cujo ente querido foi “desaparecido” e, enfim, pode lhe dar um enterro digno. Entretanto, paira ainda sobre o sobre o país a tutela militar que torna a “democracia” uma concessão, não uma conquista, como realmente foi.

Wanda lamenta perda de poder

O tema central de “Ida” encerra-se com o acordo entre Wanda e o camponês, não o filme em si. Surge então o paralelo feito por Pawlikowski. Ela é o personagem emblemático da Polônia atual, pós-queda do Socialismo Real. Ex-juíza, diz à sobrinha que outrora tinha poder, chamavam-na “Rosa, a Vermelha”. Entretanto, uma vez destituída do cargo, nenhum poder ou influência lhe restou.

Isto não a impede de encontrar tempo para se divertir, fazer amizades, frequentar bares e namorar. Talvez uma forma de fugir à melancolia, pois, diante da descoberta do que ocorreu à família e a perda de poder, se desnorteia. Seu gesto desesperado mostra o quanto ela se vê impotente para reagir e encontrar soluções para os novos desafios e recompor as forças em meio ao caos.

Pawlikowski fecha esta discussão com a introspectiva Anna, que se chama Ida. Seu encontro com a tia a mergulha no remoinho da vida real, materialista, que exige dela iniciativa e interação. Entretanto não está preparada para o choque de ser judia e ainda por cima ter de ajudar a tia a desvendar seu passado. É, para ela, a Via-Crúcis. Mas, sensível, descobre outro mundo e nele o saxofonista Lis (Dawid Ogrodnik), que toca jazz num clube noturno.

Ida prefere a clausura

Ela se digladia com a tia, por esta querer incutir nela visão diferente da recebida no convento. No entanto, quando Wanda sucumbe, ela cai numa onda de vícios e sexo. São nestas sequências que Pawlikowski desmonta a proposta central do filme. Notadamente na conversa de Ida com Liz. Ela lhe pergunta o que será a vida deles juntos. “De trabalho, passeios, dificuldades, enfim, igual ao que a vida normalmente é”, lhe responde ele.

A opção dela não é ajudá-lo a enfrentar as dificuldades, para melhorar a vida do casal e dos jovens de sua geração, prefere a clausura, onde a contemplação, a obediência, o silêncio, são respostas para ela, em total mergulho na metafísica. Com isto, Pawlikowski quer dizer que a religião tornou-se a solução contra os males advindos da crônica crise do neoliberalismo. Se isto já era falácia em seu nascedouro, hoje é muito mais. Desta forma, ele facilita o jogo do sistema.



Ida. (Ida). Drama. Polônia/Dinamarca. 2013. 82 minutos. Música: Kristian Eidnes Andersen. Fotografia? Lukasz Zal/ Ryszard Lenczewski. Montagem: Janos Law Kaminski. Roteiro: Pawel Pawlikowski/ Rebecca Lenkiewicz. Direção: Pawel Pawlikowski. Elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebichowska, Dawid Ogrodnik.

(*) Candidato ao Oscar 2015, de Filme Estrangeiro.

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