Livre", duas visões

Filme do cineasta canadense Jean-Marc Vallée transforma caminhada de 1770 km de jovem garçonete em epopeia e comunhão com a natureza.

Num dos desvios da garçonete, Cheryl Strayed (Reese Witherspoon), de 26 anos, para retornar à Trilha do Alto das Montanhas do Pacífico, PCT, ela se encontra com o afro Jimmy Carter. O diálogo ente eles, cheio de desconfianças, termina elucidando as motivações de ela percorrer 1770 km, do deserto de Mojave, na Califórnia, a Cascade Locks, em Washington, fronteira com o Canadá. Seu próprio nome o ajuda: strayed significa desgarrada em inglês.

No entanto, esta metáfora do ser desgarrado não só da sociedade, como da família, não surge em “Livre”, do cineasta canadense Jean-Marc Vallée (Clube de Compradores Dallas, 2013). Acaba sendo apenas brincadeira do repórter que faz uma matéria sobre andarilhos com a desconfiada Strayed. E o sentido assim se perde. O espectador só irá elucidá-la na autobiografia da ex-garçonete, hoje escritora Cheryl Strayed (1968), em que é baseado o filme, adaptado pelo escritor e roteirista Nick Hornby (Educação, 2008).

Isto porque, ele e Vallèe preferiram centrar a narrativa só no percurso da trilha, cortando as motivações de sua caminhada. Ou seja a epopeia de uma feminista, como a chama Carter, pelas montanhas de 4.000 metros de altitude em meio a vales, florestas, campos, lagos, rios e neve. Solitária, vergada sob pesada mochila, alimentando-se de comida desidratada, dormindo em barraca, temendo ursos, cascavéis e homens estranhos.

Livro sintetiza suas motivações

A narrativa, porém, é intercalada de flashbacks dela com a mãe em casa e no hospital, os irmãos Karen e Leif e o padrasto Eddie. E, além disso, entremeadas de cenas com o ex-companheiro Paul, ou com variados parceiros de sexo. Nada que os ligue ao que a fez submeter-se à longa jornada, muito mais interior do que de interação com a natureza. Engendra assim o triunfo da guerreira que, apesar dos percalços, simboliza o ser individual na visão político-ideológica estadunidense.

Porém o espectador ao ler o livro verá que Cheryl deu tratamento equilibrado ao longo percurso da Califórnia a Washington e às suas reais motivações: a perda da mãe e a ausência do pai, a separação de Paul e o vício em heroína, o afastamento dos irmãos e a solidão.

De origem operária, sua vida até ali tinha sido de penúria, devido às condições financeiras da família. A mãe garçonete, o pai operário, o padrasto carpinteiro. Não bastasse, tinham vivido em conjuntos habitacionais paupérrimos, até a mãe adquirir uma gleba no campo, onde faziam as refeições numa mesa de pernas cortadas. Situações raramente vistas no cinema estadunidense (Adorável Sonhadora, Benh Zeitlin, 2012), pois Hollywood prefere histórias da classe média, ignorando a classe operária do país.

Perdas atormentam a vida de Cheryl

São portanto suas origens de classe que a levam à PCT. “Eu provavelmente não seria tão destemida para embarcar em uma viagem desse tipo com tão pouco dinheiro se não tivesse crescido sem ele. Sempre pensei na situação econômica da minha família em termos do que eu não tinha: acampamento de férias, aulas, viagem e mensalidade da faculdade e a inexplicável facilidade que vem junto quando se tem acesso a um cartão de crédito que alguma outra pessoa está pagando" (1).

Isto a tornou uma mulher atormentada, percorrendo a trilha que aos poucos ajuda-a se livrar de seus impasses. ”Desde que comecei a trilha, os problemas de minha vida só passavam pela minha cabeça eventualmente. Por que, ora por que, minha bondosa mãe tinha morrido e como eu poderia viver e prosperar sem ela? Por que a minha família, antes tão próxima e forte, se desintegrou tão rapidamente depois de sua morte? ”(2).

Este sentimento de dupla perda o espectador só o encontra no livro, passando a entender sua constante sensação de estar só. Mas triunfa. É a guerreira grega que vence as serpentes, que atormentavam sua existência. Não simboliza mais o herói/a heroína, a glorificação do ser individual sobre o ser coletivo; dependeu de outros trilheiros para ali estar, livre de seus fantasmas, podendo reconstruir sua vida em outros termos.

Narrativas com opções diferentes

Não se trata, é claro, de ignorar a diferença entre as narrativas cinematográfica e literária. O cinema usa a síntese para caracterizar personagens, situações e ambientes, embora a imagem tenha a vantagem de numa cena sintetizar dezenas de páginas. Muitas vezes funde personagens ou muda-os de raça, caso de Jimmy Carter, suprime passagens de capítulos ou também funde-as, para dar unidade à narrativa. O que ocorre nas adaptações.

No entanto, a história que está na tela, ainda que tenha sentido, e os flashbacks não dificultem o entendimento de que ela reflete o subconsciente de Cheryl, não tem nem o contexto que o motivou, nem a profundidade do livro. De qualquer forma, o filme mostra a capacidade da mulher em se superar para purgar seus impasses, por si próprias. O livro e o filme têm, ainda, o clima de liberação feminina dos anos 60, cuja contribuição permanece. Ainda há muito que fazer.

“Livre” (Wild). Drama. EUA. 2014. 105 minutos. Editores: John MacMcMurphy/Martin Pensa. Música: Susan Jacobs. Fotografia: Ives Belanger. Roteiro: Nick Hornby, baseado no livro de Cheryl Stryed. Direção: Jean-Marc Vallée.

(1) Livre, capitulo 17, pág. 333, Editora Objetiva, 2014.
(2) Idem, idem, pag. 104, idem.



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