“Acima das Nuvens”, seres comuns

Cineasta francês Olivier Assayas tece narrativa sobre a memória em filme que desglamourisa o cotidiano das estrelas e trata das armadilhas da fama

Dividido em três capítulos, a narrativa deste “Acima das Nuvens” se prende à memória, à referência à morte, a fatos em ocorrência, que ditam o comportamento dos personagens. O cineasta francês Olivier Assayas (Depois de Maio, 2012) usa-os para desnudar o cotidiano nada glamouroso das estrelas de cinema. São mostradas como seres comuns sujeitos a dúvidas, fraquezas, impasses, submetidas a interesses que lhes fogem ao controle, mesmo com orientação de assistentes, advogados e empresários.

Passado e presente aqui não percorrem linhas paralelas ou sucedem um ao outro, ocorrem ao mesmo tempo, se intercambiando, num contínuo fluxo de memória. O mesmo ocorre com a morte, presente na ocorrência longínqua ou no desenrolar do instante. E se mesclam abrindo e fechando leques, para que a vida ganhe sentido e relevância para um e outro personagem. A metafísica então sede espaço ao materialismo, para o realidade assumir contornos nítidos para o espectador.

A morte se configura no dramaturgo Wilhen Melchior em Sils, nos Alpes suíços. Nos fatos em ocorrência durante a visita da atriz e amiga Maria Enders (Juliette Binoche) e da assistente desta, Valentine (Kristen Stewart); na metáfora das nuvens fluindo pelas montanhas; na lembrança estimulada pela peça de Wilhen, A Serpente de Maroja, na qual as personagens Sigrid e Helena terçam amor e força, servindo para, anos depois, Enders enfrentar dilemas que lhes eram indiferentes no passado.

Enders vive duplo impasse

Porém, o centro gravitacional do filme é Enders, em plena crise da meia idade. É através dela que passado e presente se intercambiam, por sua imagem e carreira terem sido construídas pela peça de Wilhen, Ela é agora uma estrela famosa, respeitada, e devido a isto entra em conflito por querer interpretar Sigrid, de 18 anos, papel que a consagrou, não Helena de 40 anos. Ou seja, o passado rejeitando o presente, a imagem do ontem, querendo se perpetuar. Há uma luta ferrenha para convencê-la a mudar.

Não bastasse este dilema, ela tem problemas conjugais, seu ex-parceiro na peça Henryk Wald (Hans Zischler) a assedia, e tem constantes atritos com Valentine. E os papéis que lhe oferecem são os de alienígenas indefinidos em ficções científicas. “Não, estou cansada de ficar pendurada à frente de paredes pintadas”, diz ao diretor que a convidou para o papel. Continua sendo a atriz, cuja carreira foi construída em peças e filmes que lhe renderam fama e respeitabilidade. E quer, por isso, interpretar Sigrid.

Seu contrapondo é Jo-Ann, atriz de rápida ascensão, presente na mídia sensacionalista, sites, redes sociais, por seus escândalos amorosos, bebedeiras, brigas, não por papéis em bons filmes. Seu universo é o das celebridades instantâneas, cercadas por paparazzi e fãs sedentos de selfies e boletins policiais. O interesse deles e da mídia sensacionalista por ela, é ditado por sua capacidade de gerar o produto que lhe renda dinheiro e prazer, se não some. É produto do múltiplo consumismo.

Jo-Ann não é atriz amadora

O encontro delas na sequência do restaurante permite ao espectador conhecer ambos universos: o da celebridade que se fez em décadas e o da celebridade instantânea. Assayas não contrapõe uma à outra. A recepção que Jo-Ann oferece à Enders é de quem sabe massagear egos. Mas ao chegar ao palco, ela não se submete às pressões para deixar sua co-estrela brilhar mais do que ela em cena. Surge então a profissional controlada, pronta para construir sua carreira em outros moldes.

São estas contraposições estruturadas por Assayas que ressaltam o universo de ambas e reforçam o tema central: a interpenetração passado/presente, a junção cotidiano/futuro. Ao intercalar sequências do documentário de Wilhen sobre o fenômeno natural das nuvens fluindo por entre as montanhas, como uma serpente, indica que ele ainda se repete. Já a paisagem flagrada em estado de repouso muda com a ação do tempo, tornando-se meros cartões postais para lembrar Sils, nos Alpes.

Mas foi num passeio para desfrutá-los que Enders percebeu os limites de seu mau-humor. Valentine, em sua dedicação e operosidade, o percebeu antes dela. Enquanto se submeteu a suas oscilações de temperamento, lhe foi de grande valia. Quando, devido a convivência diária, conheceram as mutuas idiossincrasias – transformar a assistente numa serviçal obediente, ficou impossível. Assim, Assayas dá conta das limitações pessoais de Enders. Ela também tem suas zonas de sombras.

Desta forma, ele captou as nuances do cotidiano e estados psicológicos de atores, atrizes, diretores, assistentes, retirando deles o glamour. Principalmente na construção dos personagens. Sem mescla de tempo, intercalar de documentários, complexos personagens, seria um filme comum. Contribui o modo de enquadrá-los, de devastar face e corpos das atrizes, mostrando-as como mulheres normais. Nem poderia ser diferente. Cinema é ilusão, mas nem tanto.


Acima das Nuvens. (Clouds of Sils Maria). Drama. França/Suíça/Alemanha. 2014.123 minutos. Editor: Marion Monnier. Fotografia: Yorick Le Saux. Roteiro/direção? Olivier Assayas. Elenco: Juliette Binoche, Kristein Stewart, Chiloe Grace Moretz.

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