O “Estado da União” e a visão dos EUA para o mundo

Para o historiador Lewis Gould, o ritual de discurso do presidente dos Estados Unidos sobre o “Estado da União”, que já tem mais de dois séculos de tradição, deve ser abolido. Segundo Gould, “o que começou como uma avaliação anual da condição nacional deteriorou-se em um momento frívolo de teatro político e de campanha contínua.” 

Mas a expectativa para a sexta alocução de Barack Obama sobre o “Estado da União”, na noite desta terça-feira (20), era grande, enquanto o ano começa com um novo Congresso dominado por republicanos.

Sem ignorar esforços domésticos importantes no tocante à saúde, à tributação, a um eventual salário mínimo e às leis de imigração, ou até a histórica retomada das relações com Cuba, após quase seis décadas de bloqueio, por exemplo, para o resto do mundo, nada ou pouco mudou com a gestão Obama. Quem pensava que a era Bush, entre os mais recentes expoentes do imperialismo, fosse o cúmulo da agressividade e da presunção estadunidense, pode ter se surpreendido com aquele que, para alguns, indicava mudança. Mas esta análise já está fora de prazo.

Entre as expectativas sobre o discurso anual estava uma postura mais incisiva de Obama. Os sete anos da crise que assolou especialmente a Europa e os Estados Unidos permitiram ensaios de crítica ao modelo fadado ao fracasso representado pela prerrogativa do mercado em detrimento das pessoas. Manifestações massivas e embates políticos por um momento pareceram abalar estruturas, mas o primeiro sinal de recuperação, no caso dos EUA, tranquilizou os donos do capital. Saindo da recessão, o país assistiu ao seu presidente anunciar novos rumos, nesta terça, em tom “desafiador”, conforme o interpretaram dois articulistas do jornal The New York Times. Obama se concedeu os créditos pela recuperação, subindo no tijolo para dirigir-se aos republicanos e pedir-lhes que “virem a página”, referindo-se às promessas de oposição ferrenha.

“Saímos da recessão mais livres do que qualquer outra nação no planeta para escrever nosso próprio futuro,” disse Obama. É aí que entra o ponto onde esta perspectiva toca, exatamente, o resto do planeta. Para o resto do mundo, a promessa foi uma combinação de “poder militar com diplomacia firme”. Em outro linguajar isso também é classificado de “carrots and sticks”, uma ideia de alternância entre estímulos e ameaças. Pois é assim que os EUA veem o mundo: um conjunto de nações atrasadas que devem ser guiadas em direção à liberdade ou ameaçadas quando prejudicarem os “interesses nacionais” norte-americanos. Apesar da forçosa redução das tropas no Afeganistão, de um ensaio de desarmamento – com a redução tímida do seu arsenal nuclear – e uma importância inédita conferida à discussão sobre as alterações climáticas, a questão da espionagem global e tantas outras presunções de uma política externa militarista voltaram a ressoar para nos lembrar do desafio imperialista que ainda enfrentamos.

Obama já provou fidelidade ao antigo conceito messiânico do “destino manifesto” estadunidense para guiar o mundo em direção à “liberdade” e à “paz democrática”, através da maravilhosa rota do livre-mercado. Parece até a fantasia de uma real intenção de sustentação da hegemonia sobre o resto do planeta, mas é preciso tomar cuidado para não minimizar o peso dessa “convicção ideológica” sobre a livre e virtuosa nação estadunidense. Traduzindo: além de tudo o que se viu nas guerras impostas ao Oriente Médio, o avanço agressivo em direção à vizinhança russa, os projetos de “contenção da China” e o investimento maciço na máquina de guerra chamada Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), Obama também pediu ao Congresso maior dedicação ao setor militar.

Ao mesmo tempo em que instou ao histórico fim do embargo de quase seis décadas contra Cuba – ou uma possibilidade de “dirigir” a ilha revolucionária “para o caminho dos nossos valores democráticos”, segundo alguns democratas – Obama pediu autoridade para avançar nas suas empreitadas pelo Oriente Médio contra a “ameaça terrorista” gestada por seu próprio projeto, agora fora de controle: o “Estado Islâmico”, atuante no Iraque e na Síria. O presidente afirmara antes não precisar da autorização do Congresso para a campanha de bombardeios que já dura cinco meses, mas opta agora pelo pragmatismo político para forjar uma “unidade nacional” pela ação rechaçada globalmente – ainda que de forma tímida devido à tragédia macabra do “Estado Islâmico”.

Obama também defendeu as negociações com o Irã sobre o seu programa nuclear, em progressiva mudança de tom desde a defesa das sanções politicamente motivadas contra o país e até mesmo a especulação sobre um possível ataque contra suas instalações, embora o presidente tenha justificado os diálogos como um esforço para impedir que o Irã produza armas nucleares. O governo iraniano tem rechaçado a acusação de buscar produzir o armamento, criticando a hipocrisia dos EUA, potência nuclear, e a negligência internacional frente às evidências não inspecionadas do programa nuclear bélico de Israel, maior ameaça no Oriente Médio. Por sinal, após deixar o pano de fundo durante o discurso de Obama, o presidente republicano da Câmara dos Representantes John Boehner convidou o premiê israelense Benjamin Netanyahu, em plena campanha eleitoral, para desafiar Obama na questão persa, no próprio Congresso. Netanyahu e outros fanáticos do seu governo opinam que as instalações nucleares iranianas devem ser eliminadas do mapa.

Em suma, Obama envia uma mensagem dupla: a das suas virtudes por ter arrancado o país da recessão e a de que, mesmo assim, busca o diálogo com os republicanos, dos quais ainda depende para seus projetos externos e domésticos – na saúde, na imigração, nos impostos sobre rendimentos altos a serem revertidos para a educação comunitária, na construção de dois oleodutos, na questão do aborto, no fim do embargo a Cuba e em outros temas ameaçados pelo veto conservador.

Enquanto o presidente tenta vencer a queda de braço com os republicanos, reivindicando a glória pela saída da recessão, o resto do mundo digladia-se com a busca por relações internacionais mais justas, livres da ameaça imperialista e da crise cíclica do capitalismo que, mesmo aparentemente em vias de superação em território estadunidense, agrava a desigualdade a nível global – já para o próximo ano a organização britânica Oxfam estima que 1% da população mundial terá acumulado riqueza equivalente à dos restantes 99%. Mas enquanto as potências capitalistas, mais especificamente os EUA, lutarem por manter um modelo hegemônico sobre as bases da exploração e da ameaça beligerante, discursos como o de Obama continuarão sendo apenas mais um frívolo teatro político.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor