Lawrence da Arábia

Lembro-me que, desde criança, a gente chamava todo imigrante árabe e seus descendentes de turcos. Aquilo me intrigou até saber que as grandes levas dos chegantes que procediam do Oriente Médio, principalmente no século 19, vinham de territórios dominados pelo Império Turco-Otomano. Os documentos eram emitidos pela Turquia.

Coisa parecida ocorreu na minha própria família, aliás. Quando meu avô morreu, eu não entendi por que escreveram em seu túmulo “Nascido na Áustria em…”. Ele, coitado, tinha vindo pro Brasil ainda criança sem sequer conhecer tal país, mas vinha da Ucrânia, então dominada pelo Império Austro-Húngaro.

Essas generalizações me vieram à memória agora, com a acirrada campanha anti-islâmica, que em verdade é contra os árabes em geral. E me fez lembrar, também, da história do misto de arqueólogo e aventureiro britânico Thomas Edward Lawrence, que teve papel fundamental na derrota otomana na Primeira Guerra Mundial (1914/18).

Ele falava árabe e se trajava de beduíno desde antes de se alistar no exército britânico e se juntar aos guerrilheiros do deserto pra combater a aliança da Turquia com a Alemanha. Com destemor, ele se tornou conhecido como Lawrence da Arábia, como a mídia o tratava. Seu papel foi ajudar a unificar a guerrilha em torno da promessa britânica de que aqueles povos se tornariam independentes, se saíssem vitoriosos da guerra.

Vencida a guerra, contudo, o Reino Unido e seus aliados, inclusive a França, deram uma banana aos libertadores e lotearam o Oriente Médio em novas colônias. Desiludido, o herói rasgou a farda e se recolheu, mas escreveu suas memórias no livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, com o nome de T.E. Lawrence.

Seu livro serviu de base para o filme “Lawrence da Arábia”, de 1962, dirigido cineasta britânico David Lean, com quase quatro horas de duração e com magnífico desempenho do ator Peter O’Toole. No filme, porém, os árabes são colocados num mesmo saco, como se fossem um único povo, desorganizado e perdido nas areias do Sahara, na interpretação do diretor.

Lawrence morreu aos 47 anos, em 1935, num acidente de moto que alguns historiadores classificam como proposital. Seja como for, seu desencanto já estava registrado em seu livro. Sua paixão pela cultura árabe também. E ele se livrou de ver o filme e de presenciar as guerras protagonizadas pelas potências ocidentais naquela parte do mundo.

A Primeira Guerra, em verdade, serviu como um rearranjo geopolítico que pavimentou o terreno pro segundo grande conflito global, vinte anos depois do término do primeiro. A perseguição de Hitler aos judeus, que estavam entre os mais de cinco milhões de mortos no conflito, gerou clima favorável à criação de Israel e a outras mudanças significativas no Oriente Médio.

A expansão da indústria petrolífera, já dependente do óleo do Oriente Médio, gerou graves conflitos. Um dos maiores foi a derrubada do governo democrático primeiro ministro do Irã, Mohammed Mossadegh, em 1953. Foi quando ele nacionalizou a Anglo-American Oil Company, uma das sete irmãs do petróleo.
Um sangrento golpe de estado levou o xá Reza Pahlevi ao poder por 25 anos, numa prolongada ditadura, conhecida pela sua truculência. Segundo o jornalista Stephen Kinzer, que foi correspondente do jornal The New York Times naquela região por mais de uma década, o golpe foi coordenado pela CIA, o serviço secreto dos Estados Unidos.

Depois vieram dezenas de outros conflitos, alguns por intervenções diretas, como a invasão do Iraque. Além dos milhares de mortos, nos últimos oito anos mais de um milhão de crianças iraquianas nasceram deformadas pelas armas químicas usadas pelas tropas dos EUA e seus aliados europeus na Otan.

Essas incursões das potências sustentam a indústria bélica desses países, que tem forte poderio econômico e elege governos também poderosos. Segundo o SIPRI (Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo), mantido pelo parlamento sueco, apenas nos EUA duas mil empresas têm lucros astronômicos com o “combate ao terror”.

Se estivesse vivo, Lawrence saberia que a propaganda contra os árabes, que agora ganha vulto, é apenas uma maneira de justificar mais carnificinas. E de modo genérico.

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