“Mommy”, limites do afeto

Centrado numa tese, filme do cineasta canadense Xavier Dolan opõe família ao Estado e a validade do afeto para superar transtorno psicológico

“Mommy” é, supostamente, um filme sobre enigmas. Estas aparências são ditadas, em princípio, pela premissa que o abre: a de que o governo canadense numa decisão autoritária decidiu entregar às famílias seus filhos com transtornos psicológicos. Esta espécie de preâmbulo irá ditar toda a narrativa, centrada na relação entre os três personagens centrais: o filho Steve (Antoine Olivier Pilon), a mãe Diane (Anne Dorval) e a amiga Kyla (Suzanne Clément), vista pelo espectador na estrutura caixote: 1:1.

Tanta “novidade” chama mais atenção do que o filme em si. Principalmente a tela quadrada 1:1, também conhecida como Formato Instagram. O que leva o aparato técnico/estético a se sobrepor à temática e a premissa político-social estruturada por Dolan. Ao questionar a fictícia decisão do Estado numa data próxima, ele quer provar que a família pode suprir certas carências afetivas do portador do TPH (Transtorno de Personalidade Histriônica), mas não chegar à cura da doença.

A complexidade do filme está justamente nisto. Dolan estrutura o tema central e seus subtemas valendo-se da tela 1:1 para levar o espectador a se concentrar nos embates Diane/Steve, Steve/Kyla. O faz em plano aproximado, abstraindo as laterais, o ambiente, o cenário, para não desviar a atenção. O efeito é devastador, pois logo na abertura há o confronto Diane/diretora do Centro de Recuperação. Elas se digladiam num vocabulário com mais palavrões que Virgínia Woolf poderia expelir.

Mãe e filho estão em atrito constante

O mesmo irá acontecer com Diane e Steve. Eles se agridem em alta velocidade, parecendo em constante acerto de contas. Inexiste forma de a mãe ajudar o filho a superar a perda do pai. Steve, de 15 anos, fuma e bebe e vai da docilidade à violência extrema, não só verbal, mas física, configurando as caraterísticas de seu transtorno. Entretanto, isto desvia a atenção do espectador da premissa original, fazendo-o buscar razões para o comportamento do adolescente.

Dolan então introduz as subtramas que tornam “Mommy” uma obra sobre mãe solteira que cuida sozinha do filho. Diane torna-se a mãe que, mesmo às voltas com as raras traduções, que os sustentam, se esforça para ajudá-lo a superar o trauma pela morte do pai. Inclusive porque suas próprias carências a impedem de entender o trauma do filho.

No início o agrada demais, depois quer refreá-lo. Consequência: brigam e brigam. A saída encontrada por Dolan é introduzir o velho clichê do “mentor”, na figura da calma e equilibrada Kyla, ainda que embaraçada por bloqueio de voz. Ela irá amortecer o confronto Diane/Steve e equilibrar a própria narrativa. Surge daí a amizade entre eles, quase anulando a crítica de Dolan ao Estado por entregar à Diane tal responsabilidade.

Steve desmente a construção familiar

A alegria de Steve, sua relação equilibrada com a mãe e a amiga e o sonho de ser músico dão esta ideia. Seu transtorno torna-se uma questão que Diane, com a ajuda de Kyla, pode superar, não tratar. Ocorre que os sintomas do TPH incluem euforia, confiança, megalomania, seguidos de violência, depressão, autodestruição e suicídio. Como se vê na sequência do supermercado, quando Steve, em “recuperação”, some e é encontrado caído com os pulsos sangrando. A ajuda amiga foi insuficiente.

Percebe-se, deste modo, as etapas construídas por Dolan para desmontar a decisão do Estado, de eximir-se de sua responsabilidade perante o cidadão. Para ele não basta a mãe solteira tentar recuperar o filho ou a contribuição bem intencionada de Kyla. A iniciativa delas só confirma o desacerto da obtusa premissa ditatorial. Steve continua doente.

Dolan em entrevista à Cahiers du Cinema (Outubro 2014, nº 704, página 14) diz que seu filme é “sobre amizade”. No entanto é mais do que isto. Mesmo porque se o preâmbulo fosse cortado, seria outro filme. O confirma, a melancólica sequência do clube, com sua câmera se alternando entre a mesa onde estão Diane, Paul, que a corteja, e Kyla, e Steve se esmerando para interpretar uma deslocada canção de Andrea Bocelli.

Diane compreende seus limites de mãe

A sequência seguinte à do clube é um primor de síntese e dialética: o trio (Diane, Steve e Kyla) se diverte na praia e depois, de carro, segue por outra estrada. Diane ao compreender, no clube, seus limites enquanto mãe para cuidar do filho com TPH, decide inverter a decisão do Estado. Mesmo que Dolan (Eu Matei a Minha Mãe, 2009), nas sequências finais, dote-as de tons melodramáticos: “uma mãe nunca deixa de amar o filho”. e de Steve dela desconfiar.

O espectador não consegue fugir à face ensandecida, mas nem por isto menos eufórica. de Steve, no corredor do Centro de Recuperação. Dolan, perseguindo seu tema, descontrói a premissa do Estado, com esta curta e enigmática sequência. Mesmo que decida ao contrário, continua sendo de sua responsabilidade o tratamento de quem, acometido por transtorno de difícil recuperação, não pode exercer a cidadania plena. A esperança de Diane, entretanto, vai para além disto. Talvez a cura. É um sonho.


Mommy (“Mommy”). Drama. Canadá. 2014. 138 minutos. Música: Noia. Montagem: Xavier Dolan. Fotografia: André Turpin. Roteiro/direção: Xavier Dolan. Elenco: Anne Dorval, Antoine Olivier Pilon, Suzanne Clément, Patrick Huard.

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