BOYHOOD da Infância à Juventude"

O papel central da mulher na construção de novo tipo de família dita a reflexão do cineasta estadunidense Richard Linklater em seu novo filme

Da Mãe Coragem (1941), peça de Bertold Brecht (1898/1956) à Mãe (1926), filme de Vsevolod Pudovki (1893/1953), baseado em romance de Máximo Gorki (1868/1936), a mulher emerge com uma força que justifica sua tenacidade. Seja lutando contra brutalidades do sistema ou armadilhas da guerra, ela sobrevive protegendo a prole sem hesitação. Não é outra a epopeia da psicóloga Olivia (Patrícia Arquette) neste intenso BoyHood – Da Infância à Juventude, do cineasta estadunidense Richard Linklater.

Liv, como é chamada pelos filhos Mason Evans Jr. (Ellar Coltrane) e Samantha (Lorelei Linklater), foge ao arquétipo da mãe de família dos filmes hollywoodianos. De ampla prole, submissa ao marido e obediente à moral protestante. De classe média, sem religião, ela pertence à variante, que, solteira, teve dois filhos com o namorado, casou-se e divorciou-se e, de novo, vive sem companheiro, entregue às suas motivações.

Além de cuidar dos filhos, Liv vê em sua própria educação o meio de sustentá-los, elevar seu padrão de vida e manter-se independente. A ligação de Mason e Samantha com o pai, Mason Evans (Ethan Hawke), se dá a intervalos, sem que ela nele busque qualquer apoio. A sequência em que ele volta do Alasca e tenta se imiscuir em sua vida bem o ilustra. Ela o dispensa no jardim, sem que ele possa ao menos se despedir dos filhos.

Arquétipos burgueses são falsos e frágeis

Com esta construção, Linkelater, diretor e roteirista, situa-a no segmento das mulheres modernas, cuja presença do homem é consequência, não objetivo. A liberação feminina surge da superação das construções burgueses, que ao tentar preservá-las não atenta que, enquanto o faz, as desestruturam por suas próprias exigências e falácias. O trabalho, a educação, a integração sócio-política conquistados, a liberou.

No entanto, Linklater desdobra sua epopeia em duas outras tramas, em estruturação bem original. Elas estão conectadas ao eixo central, mostrando o crescimento do introspectivo Mason, dos cinco aos quinze anos, e da ebulitiva Samantha, dos oito aos dezoito anos. É através deles que o espectador sente o impacto dos problemas econômicos e amorosos enfrentados por Liv. que acabam influindo na vida dos filhos.

São mudanças de escola, de casa, de cidade, para a casa de avó, de amiga, ou dos novos companheiros de Liv. As reações dos filhos são sempre iradas. “Tchau casa, vou odiar a mamãe por nos obrigar a mudar”, desabafa Samantha. Principalmente quando ela se casa com Bill Welbrock (Marco Perella), seu professor na Faculdade de Psicologia, e, devido ao violento e desumano comportamento dele, a relação deles logo azeda.

Mudanças e parceiros provocam traumas

No carro, desnorteada, Samantha desabafa: Estou de roupa suja. Por que nem nos deixou pegar as nossas coisas? Nem temos lugar para morar. É uma droga!” Estas mudanças súbitas terminam por apressar os ritos de passagem dela e Mason, fazendo-os acumular ódio e ressentimentos. Notadamente a provocada pelo casamento de Liv com o ex-fuzileiro Jim (Brad Hawkins), que exigia obediência canina dela e dos filhos.

Mas o que atenua a frustração desses dois adolescentes é a relação deles com o pai, Evans. Eles se entendem e trocam impressões e segredos. Uma das boas sequências do filme é a conversa dele com os filhos sobre sexo. “Li uma matéria dizendo que os adolescentes americanos não são sexualmente ativos, mas têm maior a taxa de gravidez”. E lhes sugere usar camisinha. Em consequência, eles se tornam amigos, íntimos e cumplices.

Além disso, Evans politiza os filhos, envolvendo-os na campanha de Obama em 2008. Esperançosos, eles saem distribuindo panfletos e postando cartazes. Mostra a expectativa gerada por Obama e quantas frustrações gerou. Evans é tão centrado que nada lhe escapa. Nem o comentário de Samantha sobre a invasão do Iraque em 19/03/2003: “Minha professora diz que a guerra é boa porque é melhor garantir”, ao que o pai, seco, a contesta: “O Iraque não teve relação com as Torres Gêmeas”.

Mason quer vida fora das teles

As preocupações de Linklater, porém, não se restringem à política. Incluem as conexões da juventude com a web. Mason questiona a obsessão da namorada Sheena (Zoe Graham) que se mantém conectada ao Facebook: ”Quero tentar viver a vida fora de uma tele. Quero intenções reais com pessoas reais, não com páginas de perfil”. Não à toa, prefere ler o Kurt Vonnegut (1922/2007) de “Café da Manhã dos Campeões”(1973), obra da contracultura dos 70, à literatura digestiva.

Pelo leque de abordagens entende-se a força deste “BoyHood”, infância de menino em inglês. É rico não só em dramaturgia, ele passa de drama urbano para o road-movie. Seu ritmo é ditado pelas constantes mudanças e viagens de Liv e os filhos pelas rodovias, impregnadas de paisagens (planícies, montanhas, vales) e sobretudo pelo senso humano que mostra Liv ao dar-se conta de que cumpria o ritual da vida. Um filme inspirador.


BoyHood – Da Infância à Juventude. (BoyHood). Drama. EUA. 2014. 165 minutos. Montagem: Sandra Adair. Música: Randall Poster, Meghan Currier. Fotografia: Lee Daniel/Shane Kelly. Roteiro/direção: Richard Linklater. Elenco: Patrícia Arquette, Ellar Coltrane, Lorelei Linklater, Ethan Hawke.

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