O Ciúme”, nada romântico

Cineasta francês Philippe Garrel usa liberação da mulher e pós-feminismo para descontruir papel do homem do século21 nas relações amorosas

Nada mais enganoso do que ver este “O Ciúme” como um drama romântico, quando na verdade o cineasta francês Philippe Garrel (Fronteira da Alvorada, 2008) quer discutir o papel que coube ao homem no pós-feminismo e na liberação da mulher. Nem o ciúme aqui é contingente, pois reflete mais a decadência do machismo, dos imperativos românticos e, por que não, da pura chantagem, usada para trazer de volta a amada. Ou se o espectador quiser, do que restou do macho neste século.

Desde o início, Garrel se põe a construir esta dualidade. Logo na abertura imobiliza sua câmera na desesperada Clotilde (Rebecca Convenant), clamando pela permanência do companheiro, o ator Louis (Louis Garrel). O espectador, a partir daí, terá a visão dele como o homem que dita as regras da separação. Isto não irá mudar nem quando passa a dividir o sótão de um prédio com a atual companheira, a atriz Claudia (Anna Mouglalis), que deve aguardar as iniciativas dele, mesmo em crise.

Garrel estrutura os entrechos de forma a envolver o espectador nas relações de Louis com a filha, a pequena Charlotte (Olga Mishtein), seus amigos atores teatrais, a irmã Esther (Esther Garrel) e, claro, Claudia. Cada uma destas sequências se constitui numa subtrama que reforça o tema central. Cabem a Louis as iniciativas: a filha deve esperar sua visita, os amigos atores sua amizade, a nova companheira seus momentos disponíveis. Entretanto, ele não tem emprego nem estabilidade financeira.

Louis destitui-se do papel de macho

A simplicidade com que Garrel encadeia os entrechos, sem preparação, usando cortes secos, desconcerta numa época que as trilhas sonoras ditam a narrativa. Ele prefere transitar entre os diversos núcleos de ação tendo às vezes acordes de violão como fundo. Ao centrar-se nas relações de Louis com Charlotte temos o pai cuidando da filha, numa idade delicada. Assim, destitui-se da condição de macho, que apenas fecunda, deixa de compartilhar a educação da prole e usa seu tempo livre para estar com os amigos.

Ilustra-o bem a emblemática sequência do pirulito no parque com Charlotte e Claudia. Esta se intromete invertendo as posições, trazendo o lúdico para a cena, com as duas terminando por influenciá-lo. É esta flexibilidade que lhe falta nas relações com a hesitante Claudia. Desempregada, sem papéis em filmes ou peças, ela se divide entre ele, o frágil equilíbrio interior e a busca de um novo emprego, que melhore suas condições de vida. São nestes momentos que a dualidade homem/mulher retorna forte.

Mais do que mutua paixão, ela passa a depender dele para suportar o difícil momento que atravessa. E ele não se dá conta que isto se torna um martírio para ambos, pois viver no sótão representa a decadência para ela. O pior da pobreza para Claudia é viver sem dinheiro. E ele sempre adia uma solução, por ter-se acomodado à situação e a obriga também a fazê-lo. Não vê que isto o torna o obstáculo do qual ela deve se livrar. Nem quando ela entra em desespero, obtém a solidariedade dele.

Choque brota de situação banal

O bom destes entrechos é que Garrel não se vale de subterfúgios para o espectador entender as motivações de Louis e Claudia. A violência vem dos impasses da vida a dois, da inércia dele, ditada por sua condição de macho. O sofrimento interior e físico dela emerge sem intensas cenas que levem ao desabafo, como na sequência em que ela surge na cama e se mostra agoniada. E quando, finalmente, há o choque, ele brota de uma situação quase banal. A iniciativa dela para sair do impasse fere a supremacia machista de Louis.

É então que Garrel e seus corroteiristas Caroline DeRuas, Arlete Langmann e Mark Cholodenko fecham o tema central: a perda da razão do homem no pós-liberação feminina. Ele que nas sequências iniciais negligenciou as suplicas de Clotilde, abandonando-a com Charlotte, sente-se ferido e ultrajado pela atitude forçada tomada por Claudia. Seu gesto-limite beira o romantismo, de atitude extrema, para trazê-la de volta.

A conversa dele com a irmã Esther no quarto de hospital traduz sua insegurança, sua imaturidade e incompreensão da motivação de Claudia. A dependência financeira dela, fere mais que traição e carência amorosa. E não se trata de ser submissa às imposições de Louis, como suposto chefe do casal, mas da recusa dele em aceitar que ela tenha tomado a iniciativa de tirá-los do sótão e, portanto, das precárias condições de vida que levavam.

É desta forma que Garrel (1948), em filme de eficiente preto e branco de Willy Kurant, que bem traduz o estado psicológico dos personagens, monta em 77 minutos uma obra que discute a crise do macho, do homem enquanto reflexo de um sistema também em crise, como o capitalismo em sua fase neoliberal. Desta maneira, ele retoma o frescor dos primórdios da Nouvelle-Vague, à qual pertenceu, quando ousar não era acomodar-se aos ditames da bilheteria. Algo se move e este mover tem consequências.

“O Ciúme”. (La Jalousie). Drama. França. 2013. 77 minutos. P&B. Música: Jean-Louis Aubert. Edição: Yann Dedet. Fotografia: Willy Kurant. Roteiro: Philippe Garrel, Caroline DeRuas, Arlette Langmann, Mark Cholodenko. Elenco: Louis Garrel, Ana Mouglalis, Olga Mishtein, Rebecca Convenant.

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