“Um Belo Domingo”, conscientes rupturas

Em filme sobre professor e garçonete que vivem de trabalhos temporários, cineasta francesa Nicole Garcia revela a França das pequenas cidades

O desfecho deste “Um Belo Domingo” deixa ao espectador a tarefa de antever o que vem depois, como se interrompesse a narrativa e não fosse necessário mostrar mais nada. A cineasta francesa Nicole Garcia e seu corroteirista Jacques Fieschi põem a garçonete Sandra (Louise Bourgoin) em cena, arrumando as mesas do restaurante à beira mar, enquanto seu companheiro, o professor Baptiste Cambiére (Pierre Rochefort), é tão só lembrança.

Uma bela construção de happy-end que deixa a possibilidade de a sequência final ser apenas um interregno. Até esta cena, eles passam por uma verdadeira epopeia, como trabalhadores temporários em pequenas cidades do sul da França. Ele lecionando em escolas particulares, ela se alternando em restaurantes. O que permite a Garcia tratar das dificuldades enfrentadas por eles em suas precárias relações de trabalho.

O elo que ajuda Baptiste e Sandra atravessarem as duras barreiras se configura no garoto Mathias (Mathias Brezot). E traduz uma situação comum a filho de casal divorciado: a guarda fica com o pai ou a mãe, mas sua vida se torna árdua com qualquer um deles. Assim, carentes de afeto à sua maneira, vão superando os obstáculos reais ou imaginários.

Sandra é de se  meter em encrencas

Enquanto o introvertido Baptiste revela-se pouco, Sandra é ousada, e não raro se mete em encrencas. No entanto, é o envolvimento dela com o crime organizado que deslancha a ação. Um clichê do qual Garcia se livra ao usá-lo para contrapor a situação do trio à da família burguesa cuja ligação com Baptiste irá reafirmar sua condição de deserdado por opção.

São nas sequências da segunda e terceira parte do filme que Garcia o justifica. Se a construção de Sandra como personagem é de perseguida, mal amada, cheia de arranhões pelo corpo, vivendo em cubículos, a de Baptiste é do professor substituto que não se importa em mudar de escola e de cidade. Porém é capaz de brutalidade para defendê-la de molestador. É desta forma e pelo afeto que a conquista e ao filho dela, Mathias.

Porém o reencontro de Baptiste e sua família burguesa num castelo ameaça a cisão do trio. Há frequente mal estar entre Sandra e Liliane Cambiére(Dominique Sanda), a matriarca. Dá-se um declarado preconceito de classe, com menções depreciativas à rusticidade dela, ao deslocamento de Mathias como filho de pais divorciados e por ele protegê-los. Assim, à condição de trabalhadores temporários soma-se a de excluídos.

Garcia faz bom uso da dramaturgia

É então que Garcia constrói diversas sequências que somam técnica e dramaturgia: I – Durante almoço ao ar livre emergem as razões de Baptiste ter abandonado tudo e a conversa desanda em conflito familiar. Irritado, seu irmão mais velho Gilles (Eric Ruf) a encerra dizendo: “(Neste tipo de situação) ingleses falam do tempo, franceses falam da vida deles”; II – Do jardim, sua irmã Emmanuelle (Deborah François) o vê à janela. Em flashback ela relembra a situação dele no manicômio e em seguida está no quarto com ele culpando-o pelas mágoas da família.

Em duas outras sequências, Garcia mostra o caráter de Liliane na exploratória conversa com Sandra. Ao invés de questioná-la, se desdobra em elogios aos dotes físicos dela. Forma de desmerecer a inteligência e a capacidade de a garçonete ser capaz de ombrear-se a seu filho. Dominique Sanda (1948…), atriz de grandes diretores (Bernardo Bertolucci, O Conformista, 1970; Vittorio De Sica, O Jardim dos Finzi-Contini, 1970), ressurge contida, como a velha e diabólica dama.

No entanto, é na reunião dela e dos filhos com Baptiste que o filme ganha em dramaticidade. O pressionaram tanto por ele ser um Cambiére, que, brilhante aluno do curso de Astrofísica, entrou em crise psicológica e abandonou tudo. E mesmo sendo agora professor, exigem que se torne executivo de empresa do grupo. Sua reação é lapidar: ”Ensinar a quem não sabe nada é desprezível? Poder continuar sendo professor, ou retornar à astrofísica, ou montar uma barracada de frutas. Qual é o problema?”.

Garcia aborda aqui a questão central para a burguesia rentista de hoje, que concentra 99% da riqueza e engendra a perpétua desigualdade entre ela e os trabalhadores que só detém 1%. O que vale para ela é girar o capital: “O que é a sua vida? Um quarto de hotel? Um barraco? Eu faço dinheiro (…) vá se danar!”, impreca o irmão Thomas (Benjamin Lavernhe) contra ele, Baptiste. O ódio da classe dirigente brota feroz nesta sua contestação contra a transmissão de conhecimento aos excluídos.

Não à toa, Garcia centra sua narrativa em pequenas cidades e balneários, onde as diferenças de classe estão à vista. Numa sequência da primeira parte do filme, Sandra conversa com garçonetes amigas à beira mar, e uma delas espantada com o luxuoso iate atracado à distância, desabafa:”Por que estas pessoas têm uma vida assim e nós não? Sandra responde: “Nunca vai ter resposta a isso”. Talvez. Garcia com sua câmera que se move devagar e diálogos afiados, sabe o que diz.


“Um Belo Domingo”. (Le beau dimache). Drama. França. 2013. 96 minutos. Montagem: Simon Jacquet. Música: Eric Neveux, Fotografia: Pierre Milon. Roteiro: Jacques Fieschi/Nicole Garcia. Direção: Nicole Garcia. Elenco: Pierre Rochefort, Louise Bourgoin, Dominique Sanda, Mathias Brezot.

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