Os Amigos”, de memória e infância

Lembranças de arquiteto o levam às perdas da infância e de amigo e aos impasses da vida adulta neste filme da cineasta paulistana Lina Chamie.

A travessia dos mares revoltos configurados nas obstruídas artérias da megalópole São Paulo é metáfora para a odisseia existencial de percurso dramático do arquiteto Theo (Marco Ricca), neste “Os Amigos”, da cineasta paulistana Lina Chamie (A Via Láctea, 2006). Ele perambula por ruas e avenidas em sua carro em busca de algo que supra a repentina perda de Juliano, amigo de infância, e dê sentido à sua vida adulta, perdida entre clientes mal-humorados, solidão e carência afetiva.

Chamie, no entanto, não o faz percorrer caminhos tortuosos, enfrentar inimigos ferozes, tampouco existe uma Penélope a esperá-lo. Sua travessia é interior, de portas entreabertas na profissão ou fechadas para sempre, igual na morte do amigo. E de tentativas de reconstrução do elo perdido entre a infância e a vida adulta, que não lhe trouxe compensações amorosas. Resta-lhe apenas a amizade de Majú (Dira Paes), cujo ex-companheiro negligencia a educação dos dois filhos menores deles.

Theo, mesmo diante de seus próprios impasses, se presta ao papel de animador paterno, contando histórias para eles e suprindo inesperadas ausências. Isto permite a Chamie traçar paralelos entre a infância dele, nas brincadeiras com Juliano e das crianças pulando na cama elástica, encenando peças teatrais, incentivando o lúdico ou liberando a fantasia. Seu contraponto é o jogo de figurinhas, “tampão” com Juliano, as ingênuas brincadeiras e os conflitos familiares presenciados na casa do amigo.

Inexistem super-heróis brotados da fantasia

Interesses que demarcam o universo infantil na década de 70, ainda ditados pela imaginação, e os do século 21, dominados por super-heróis da cultura pop, produzidos por veículos multimídia (cinema, TV, quadrinhos, internet): Super-Homem, Homem de Ferro, Batman, Homem Aranha. E se prestam ao marketing, ao manejo de armas pesadas, à violência ritualística, tipo série Transformers, de Michael Bay. Inexiste a construção mitológica, o fazer histórico, a fantasia que brota do lúdico e do real não mediado.

Daí a leveza de Hércules, em seus “12 trabalhos”, no bem estruturado plano-sequência do diálogo do garoto-vendedor com Theo na grande loja de brinquedos. O herói mitológico, a divindade, a força, a imaginação, cuja energia se firmou no imaginário de sucessivas gerações. O super-herói é tão só a construção que sustenta a voracidade do Capital, alimentado pela produção intensiva e o consumo multiplicado, que engendra as séries e seus subprodutos: camisetas, bonecos, camisas, tênis, bonés, etc.

Mas ao jogar com esta dualidade, do super-herói/herói mitológico, Chamie confirma o prejuízo infligido também às construções orais pelos super-heróis da cultura pop. Os filhos de Majú, embora se interessem pelas histórias de Theo não demonstram entusiasmo com elas. O elo entre o estímulo à troca e à imaginação se perdeu na substituição dos mitos de identidade pelos super-heróis. Assim, perde se o “eu”, que identifica uma cultura em sua troca com outras, evitando o imperialismo cultural.

Morte fez a crise emergir

Theo sempre oscila entre o apoio à família do amigo falecido, a tentativa de recuperar o lúdico e a reafirmação de seu universo adulto. Este é confirmado por dois fios (sequencias que reforçam a trama central): o do casal indeciso quanto ao número de filhos e o do diretor de escola mais interessado no número de alunos do que no espaço de circulação entre prédios, que elevaria a qualidade de vida dos alunos. Surge então a ideia de que a crise estava submersa e a morte de Juliano a fez emergir.

Além dos citados fios, Chamie intercala as sequências do classe média Theo com a sub-trama da doméstica afrodescendente, cheia de subterfúgios. A câmera a segue pela cozinha, pelas ruas e pelo abarrotado ônibus. É outro tipo de odisseia: a da sobrevivência da trabalhadora nos coletivos sempre lotados e as armadilhas que ela conhece, mas dela nem sempre escapa. É um contraponto que repõe Chamie em suas preocupações com a megalópole, suas contradições e desigualdades.

São nestas sequências que “Os Amigos” dá continuidade à estética de “A Via Láctea”, com planos bem construídos, tons sombrios, ambientes hiper-coloridos, personagens atormentados em clima opressivo. A violência contra a doméstica pode ser vista como punição ou vitimação dada à sua falta de reação. Ela fica presa entre os demais passageiros, atônita, mas sem desespero. Dá a sensação de aceitar o que acabou de lhe acontecer, igual a tantas/os outras/os passageiras/os acostumados a isto.

Não se trata de anticlímax, este aparece no desfecho do tema central, quando devagar Theo e Majú sobem as escadas de joelhos. O espectador tem a impressão de presenciar mudança na vida de ambos, porém o sentido dubio logo se desfaz, como se Chamie o chamasse de voyeur. O filme, no entanto, exige paciência e atenção aos fios e a sub-trama, porque sua estética foge ao realismo cru, visto em A Via Láctea. É multifacetado e, às vezes, as sequências parecem desconectadas. O filme, porém, é esse.

“Os Amigos”.
Drama. Brasil. 2013. 89 minutos. Trilha sonora: Benjamin Britten, Camille Saint-Saens, Edvard Grieq. Montagem: Karen Harley. Fotografia: Jacob Solitrenick. Roteiro/direção: Lina Chamie. Elenco: Marco Ricca, Dira Paes, Sandra Corveloni.



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