Mil Vezes Boa Noite”, ocultas motivações

As opções de resistência ao imperialismo e o obcecado trabalho de repórter-fotográfica são temas do filme do cineasta norueguês Erik Poppe

Os riscos de coberturas de confrontos bélicos e a compulsão da repórter-fotográfica Rebecca (Juliette Binoche) são abordados pelo cineasta norueguês Erick Poppe em seu filme “Mil Vezes Boa Noite” com o olhar dividido entre a visão feminina e as motivações dos que participam da resistência às invasões imperialistas na Ásia, na África e no Oriente Médio. E demonstra sua hesitação e temor em registrar os dois lados do enfrentamento para tornar verdadeira sua obra.

Seu foco central são as mulheres, dentre elas adolescentes que participam do movimento de resistência às invasões dos EUA e seus aliados da União Europeia (UE). Numa sequência cheia de detalhes, Rebecca registra o ritual do banhar e vestir de uma delas com sua câmera, mostrando-se distante, profissional, diante de ato dotado de significado político-religioso. Silencioso, interiorizado, passa a consciência do ato, de sua urgente necessidade e a certeza da eternidade.

No longo plano-sequência pelas ruas de Cabul, Poppe se detém não na resistente, centra-se em Rebecca, numa bela composição de Binoche, atriz acostumada a matizar climas e introspecção (A Liberdade é azul), Krzysztof Kielowski, 1993). Ela mantém-se distante, dando a impressão de haver algo secreto e ao mesmo sagrado. Diferente dos irmãos que se preparam para se tornar homens-bomba, na luta contra a invasão israelense, na obra do palestino Hany Sbu-Assad, Paradise Now (2005).

“EUA são estado terrorista”

O universo de Poppe é essencialmente feminino. Rebecca cobre a invasão do Afeganistão pelos EUA, centrada nas mulheres, no clima místico-político e no autossacrifício delas. E alterna cenas de rua e do interior do carro, criando suspense ao mostrar crianças e velhos, ameaçados. Relembra crianças africanas portando metralhadoras ou fuzis sem chamar atenção para o quê e quem as levou à tal situação.

Trata-se de uso extremo, porém mais condenável ainda são os EUA e a UE ocuparem países para se apropriar de seus recursos naturais, cooptarem ou liquidarem suas lideranças, taxarem suas organizações de libertação nacional de extremistas por resistir à desestabilização política, a destruição de suas estruturas econômico-financeiras. E, acima de tudo, usarem drones que vitimam sobretudo crianças, mulheres e velhos.

Não à toa, Noam Chomsky, linguista e ativista político estadunidense, sentenciou: (…os Estados Unidos são o maior Estado terrorista do mundo e se orgulham disso”. E completa: ”(…) Washington também desponta como campeão mundial da geração do terror. O ex-analista da CIA, Paulo Pillar, alerta sobre o ´impacto gerador do ressentimento dos ataques americanos´ na Síria, que podem induzir ainda mais as organizações jihadistas Jabhat al-Nusra e o Estado Islãmico a repararem sua ruptura no passado e fazerem campanha em conjunto contra a intervenção americana, ao retratá-la como uma guerra contra o Islã”(*).

“Alguém tem de fazer alguma coisa”

Como se vê, Poppe foge a esta discussão. Transfere-a na segunda parte do filme para os conflitos familiares de Rebecca, devido à sua opção pela profissão tida como de “alto risco”. Principalmente seu companheiro Markus (Nikolaj Custer-Waldau), geólogo marinho, que se preocupa com a destruição ambiental e não busca entender as motivações dela. Porém é neste entrechoque, inclusive com a filha adolescente Lisa (Lauryn Canny), que ela acaba se reencontrando após a crise físico-psicológica.

Isto permite a Poppe trazer Lisa para a ação – o personagem que equilibra a narrativa. Ela transita entre a mãe e o pai e ajuda-os a expor suas contraditórias visões. Rebecca ainda mais por terem se reaproximado, mas depois a vê em toda sua compulsão por imagens. Acabam ficando sob fogo cruzado entre facções rivais num acampamento de refugiados no Quênia.São sequências que, dialeticamente, contribuem para o amadurecimento de uma e a decisão final de outra.

Se a questão se resolve entre mãe e filha, mesmo deixando fraturas expostas, resta a Poppe desatar, na terceira parte, o conflito político-interior de Rebecca e portanto o seu. Ela tem verdadeira fixação na participação feminina, principalmente adolescentes, nos atos de resistência. Seu clamor é uma condenação ao engajamento da mulher, em países onde elas são discriminadas: ”Alguém tem de fazer alguma coisa!”.

Do ponto de vista da/o resistente é o triunfo e do/a fiel a recompensa eterna. Poppe não percorre estes meandros. Deixa ao espectador a certeza da condenação do ato em si. Nenhuma reflexão sobre a culpa dos EUA e da UE por levarem as organizações políticas de distintos países por eles ameaçados ou invadidos a usar diferentes instrumentos de luta pela libertação de seus povos. Trata a todos, indistintamente, como fundamentalistas e terroristas. Em primeiro lugar vêm seus interesses.

Mil Vezes Boa Noite. Tusen Ganger God Natt), Drama. Noruega/Irlanda/Suécia. 117 minutos, 2013. Montagem: Sofia Lindgren. Trilha Sonora: Armand Amar. Fotografia: John Christian Rosenlund. Elenco: Juliette Binoche, Nicolaj Custer Waldau, Lauryn Canny

(*)Chomsky, Noam, O Maior Estado Terrorista, UOL Notícias, 01/11/2014.


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