“Só Os Amantes Sobrevivem”, modernos vampiros

Cineasta estadunidense Jim Jarmusch usa casal de vampiros para matizar a solidão e a decadência da sociedade capitalista atual.

verDepois de abordar temas em que pontificam deserdados, solidão e falta de perspectivas, o cineasta estadunidense Jim Jarmusch usa casal de vampiros, o roqueiro Adam (Tom Hiddleston) e sua companheira Eve (Tilda Swinton), para matizar a decadência da sociedade capitalista atual, inclusive dos EUA. O faz com ousadia, pois seus vampiros, numa metáfora da luta contra a aids, não saciam sua fome com sangue fresco, preferem o dos fracos obtidos por vias nada éticas.

No entanto, este tema não lhe é desconhecido. Já o abordou em “Daunbailó” (1986) e “Uma Noite Sobre a Terra” (1992), nos quais trata dos impasses sociais nos EUA e em países europeus, respectivamente. Neste “Só Os Amantes Sobrevivem”, ele divide a ação entre Tânger, Marrocos, onde vive Eve, e Detroit, Michigan, EUA, onde mora Adam. Diferente do que fizeram por cinco séculos, eles não se deslocam como corvos, usam avião e se comunicam via Skype. São vampiros higtech.

Além desta mutação, eles evitam sair à caça de vítimas para saciar sua fome com sangue fresco. E têm preferência por ambientes noturnos. Estão mais para os desencantados vampiros de Tony Scott, em “Fome de Viver” (1983), que para o sedento “Drácula”, do inglês Bram Stoker (1847/1912), e suas adaptações homônimas pelos alemães F.W. Murnau(1888/1931), “Nosferatu, o vampiro” (1922), e Werner Herzog (1979). São, portanto, vampiros modernos, sem tendência a morcegos em castelos assombrados.

Adam vive na decadente Detroit

É com eles que Jarmusch sustenta seu tema: vampiros modernos sobrevivem na etapa neoliberal do capitalismo. Usam maços de dólar e cartões de crédito para suas transações de sobrevivência. Adam vive fechado num sobrado e faz passeios noturnos por ruas da decadente Detroit, de 701,475 habitantes (2012), outrora líder mundial na produção de automóveis e berço da produção em série da Ford. Hoje perdeu espaço para veículos japoneses e europeus, mais baratos, menores e eficientes.

Ex-símbolo da riqueza dos EUA e do status de sua classe média, Detroit faliu. De carro, indo por ruas e avenidas vazias, ladeadas de velhos prédios e casarões, Adam explica a Eve a importância deles. Da fábrica da Packard ao museu da mitológica Motown, gravadora da música afro-estadunidense (soul, blue, jazz). Eles se tornaram vítimas da internacionalização do capital e da transferência das empresas para nações onde aviltam direitos e salários dos trabalhadores e obtém grandes lucros.

Jarmusch se permite ainda tratar de questões urgentes nesta época de invasões ditas humanitárias, quando se trata de manter espaços geopolíticos imperialistas. Mesmo famintos e sem condições de buscar sustento, Adam e Eve trocam um diálogo cheio de sutilezas:

– Adam: 82% do sangue humano é água. Já começou a guerra pela água? Ou ainda seguem com a do petróleo?

– Eve: Sim, está apenas começando.

– Adam: Só vão se dar conta quando for tarde demais.

Conseguem contaminar o próprio sangue

Ele, Adam, não se restringe às invasões imperialistas no século 21, liga-as às perseguições sofridas por artistas e cientistas europeus, às quais assistiu, em diferentes épocas: “Pitágoras assassinado, Galileu aprisionado, Copérnico ridicularizado, Newton forçado a praticar a alquimia”. E se indigna: “(…) e ainda estão se queixando de Darwin. E agora estão conseguindo contaminar seu próprio sangue, sem mencionar a água”.

Não bastasse isto, em plena ocultação de um cadáver, ele e Eve se referem às pestes que dizimavam populações inteiras na Europa. ”Não (é) como antes; jogá-lo no Tâmisa para flutuar com os cadáveres tuberculosos”. Ao que ela ironiza ao vê-lo se diluir no ácido: ”Foi certamente visual”. A arte tem esta vantagem: é mórbido, mas veraz.

No entanto, o filme tem outro personagem admirável: o ácido e frágil dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564/1593), o Kit (John Hurt), que forma com eles o trio de vampiros. Através dele ressurgem os poetas românticos ingleses, Percy Bysshe Shelley (1792/1822), e George Gordon Bayron (1788/1824). Adam demonstra seu desapreço por Bayron e Kit por seu desafeto William Shakespeare (1564/1616). São meros ciúmes de rivais na arte, pois não destrincham suas razões.

Ava representa a época consumista

Além de Marlowe, Jarmusch cria um contraponto a Adam e Eve. A jovem e inquieta Ava (Mia Wasikowska), irmã de Eve, não é de se precaver. Encarna o espírito desta época: consumista, hedonista, ela não se contenta com sangue em tubos ou picolé de sangue. Termina caindo na danação que a faz perambular pelos tempos sem ter onde ou em quem se apoiar.

O bom deste “Só Os Amantes Sobrevivem” é Jarmusch dotá-lo de câmera ágil em constantes movimentos, fazendo o tempo escoar. Longas caminhadas, em grandes planos, dos personagens pelas ruas escuras e desertas. Mudanças de planos em ambientes fechados e belas músicas. O rock fúnebre de Adam e a penetrante canção da marroquina Jasmine (Yasmine Hamdan) ajudam o filme fluir e encadear a história com leveza.

Só Os Amantes Sobrevivem”. “Only Lovers Left Alive”. Drama. Terror. EUA. 2013. 123 minutos. Editor: Affonso Gonçalves. Música: Josef Van Wissem. Fotografia: Yorick Le Saur. Roteiro/direção: Jim Jarmusch. Elenco: Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Mia Wasikowska, John Hurt, Yasmine Hamdan.



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