Perguntas a um General de Brigada

Fui assistir a uma palestra com um “general de brigada”, parte da programação da Semana de Relações Internacionais promovida pelos jovens estudantes de graduação daquele curso. Confesso que, ingenuamente, fui até lá imbuída por um certo esforço de boa vontade. Afinal, o Ministério da Defesa publicou em 2013 o “Livro Branco da Defesa”, coisa inédita neste país, onde os assuntos da caserna sempre foram reservados somente à caserna.

O belo prefácio, assinado pelo Ministro da Defesa – o embaixador Celso Amorim -, afirma que o Livro Branco é parte de um instrumento de democratização das informações relativas à Política Nacional de Defesa, ambicionando “ser um estímulo à discussão sobre a temática da defesa no âmbito do Parlamento, da burocracia federal, da academia, da sociedade brasileira em geral”. Se há este esforço, pensei, de alguma maneira o Exército Brasileiro já deve estar absorvendo os novos princípios democráticos; valerá a pena, portanto, ouvir o que tem a dizer um general (graduado, mestre, cheio de títulos, um “militar-acadêmico”, afinal).

Mas o general não correspondia aos meus anseios por uma discussão sobre princípios democráticos. Sua apresentação “histórica”, um desfile de feitos militares nos últimos 150 anos da vida brasileira, lembrava aqueles velhos e proscritos livros de Educação Moral e Cívica, onde aprendíamos que os militares estiveram presentes nos momentos de salvação nacional, tendo sido os pais fundadores da república e da ordem democrática. Apresentou-nos a “Guerra Fria” como um evento no qual o Brasil estaria inserido antes mesmo de sua aparição no cenário mundial, pela ação do “traidor” do exército Luiz Carlos Prestes nos levantes de 1935. Teve ainda o cuidado de “pular” o golpe de 1964, mas deixou nas entrelinhas que tudo o que se passou depois de 1935 justificava-se pelo perigo comunista.

Daí em diante passou à propaganda da moderna estrutura da defesa brasileira, das participações do Brasil em missões de paz. Justiça seja feita, valorizou a atual política externa,a ideia de promoção do multilateralismo, de cooperação com os vizinhos da América do Sul e de uma política de defesa voltada à “dissuasão” do inimigo externo.

Mas foi nas respostas às perguntas dos participantes que o representante das Forças Armadas mostrou o velho ranço autoritário das instituições militares. Disse a uma professora, que o questionou sobre a ausência do golpe militar de 1964 em sua fala, que este não é “um assunto para paixões”. Que é preciso “estudar” e que o estudo imparcial mostra que a “revolução” militar foi consequência da guerra fria. Foi uma reação ao inimigo interno. Enfim, mostrou-nos que as Forças Armadas, definitivamente, não estão dispostas a reconhecer o desserviço prestado ao país ao interromper as reformas democráticas do governo João Goulart e instaurar vinte anos de um regime fechado, autoritário, corrupto e que nos legou uma dívida externa capaz de comprometer toda a geração nas décadas de 1980 e 1990.

Não tive oportunidade de fazer, eu mesma, perguntas ao general, porque o tempo de programação era exíguo. Deixo aqui, porque considero um bom debate, algumas das perguntas que lhe faria:

Senhor General de Brigada, o Livro Branco da Defesa informa que o Brasil investe nos efetivos militares, em tecnologia nuclear e armamentista unicamente com objetivos de dissuadir possíveis inimigos externos, principalmente em vista das imensas reservas de petróleo encontradas na camada de pré-sal, das reservas de água doce dos aquíferos Guarani e Alter do Chão, dos minérios e da biodiversidade. Ainda que não nomeie o “inimigo externo”, o Livro Branco refere-se inúmeras vezes a “uma grande potência” que não é signatária de tratados fundamentais à manutenção da paz no mundo, como por exemplo os que se referem ao desarmamento nuclear. Quem é a “grande potência”? Por um acaso ela se chama Estados Unidos da América?

Senhor General de Brigada, presumo ser afirmativa a resposta à minha primeira pergunta. Então vamos à segunda: o senhor chama a Luiz Carlos Prestes de traidor por ter se tornado dirigente do Partido Comunista do Brasil (e, como o senhor mesmo lembrou, senador da República por este partido), aliado, portanto, da URSS. Se Luiz Carlos Prestes – defensor que foi do desenvolvimento nacional, dos direitos dos trabalhadores, da soberania do Brasil frente às ingerências dos EUA – foi um “traidor”, como o senhor qualificaria o Presidente Dutra, que abriu nossa economia indiscriminadamente aos dólares americanos, gerando desvalorização da nossa moeda nacional e enorme crise financeira? Como admitir a maior quebra de hierarquia militar da história recente do Brasil, a deposição do comandante-em-chefe João Goulart pelos generais golpistas de 1964? Como o senhor qualificaria o endividamento externo sem precedentes gerado pela política irresponsável dos governos militares? Como o senhor qualificaria o confisco na poupança do povo brasileiro no governo Collor? Como o senhor qualificaria o presidente Fernando Henrique Cardoso, que vendeu o patrimônio nacional a grupos estrangeiros e retirou do Brasil o controle sobre recursos estratégicos, além de ter desmontado as forças armadas e avançado em negociações para entregar o controle da Base de Alcântara aos EUA? Estes não são “traidores” da nação?

Senhor General, o senhor afirma ser o Livro Branco da Defesa um passo para a democratização do debate sobre a política de defesa nacional. O senhor afirma que “não há solução militar” para os problemas do mundo (e nesta parte concordo com o senhor e lembro que a Presidenta Dilma disse isso ontem, na Assembleia Geral das Nações Unidas) e que a defesa é apenas uma das múltiplas facetas de uma política de Estado. Mas ao mesmo tempo o senhor nos mostrou slides onde aparecem as “ameaças” para as quais as forças armadas devem se preparar e, o que há nesses slides? Manifestações de civis e movimentos sociais. General: se os civis, se os movimentos sociais, são ameaças à estabilidade do país, como é que poderão fazer parte dos debates sobre política de defesa? Quem, então, poderá tomar parte desse debate? Há, de fato, intenção das forças armadas em ouvir o povo brasileiro sobre questões de defesa ou isso continuará sendo um assunto da caserna? O Livro Branco é apenas uma prestação de contas, uma concessão ao “ministro civil da defesa” e nada mais?

No caso de um conflito assimétrico, General, em uma hipotética invasão da “grande potência do norte” – infinitamente superior ao Brasil em termos de arsenal bélico – como o senhor espera que o povo brasileiro, essa “ameaça em potencial à paz” – conforme a concepção das forças armadas – seja ganho para a ação e confie em seu exército a ponto de colaborar em uma guerra de guerrilha assimétrica em defesa do território brasileiro?

Encerro aqui o bloco de perguntas que teria feito com algumas hipóteses. A primeira é que “democratizar” o debate é muito mais do que publicar um documento com diretrizes: é deixar que o povo trace as diretrizes, é permitir que o legislativo torne-se parte ativa nas decisões sobre defesa nacional. A segunda é que um novo patamar de relacionamento entre as forças armadas e “os civis” passa, antes de tudo, por aceitar que se questione a visão oficial (ou oficiosa?) dos acontecimentos e que se passe a limpo o passado. Isso significa rever o papel que as forças armadas tiveram em nossa história recente, reconhecer que a usurpação, pelos militares, do poder civil foi a maior de todas as traições ao povo brasileiro. Isso sim seria dar um passo em direção ao novo: um Brasil onde assuntos de defesa não sejam sinônimo de questões reservadas aos funcionários de farda.

A “Política Nacional de Defesa” será democrática quando o povo dela se apropriar. Ou não será.

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