“Antes do Inverno” de perdas e descobertas

Paixão de sexagenário francês por jovem franco-marroquina mostra os limites das diferenças classe neste filme do cineasta Philippe Claudel.

Filmes sobre relações inter-raciais, com toques noir, costumam pender para desencantos e impossibilidades. Não é diferente com este “Antes do Inverno”. O cineasta francês Philippe Claudel dota-o das convenções do gênero para tratar das submersas instabilidades de casal burguês e de suas cruéis e insuspeitas descobertas. Todo um clima é estruturado a partir dos ambientes em que circula o respeitado cirurgião e empresário Paul (Daniel Auteuil), em sua clínica e em sua mansão.

Seu aparente contraponto é a companheira Lucie (Kristin Scott Tomas), com sua vida entre jardins, árvores frondosas e sofisticadas decorações interiores. Dá impressão de perfeito equilíbrio entre eles, o filho único Victor, a nora Caroline, a neta de cinco anos e o casal de amigos – o sócio Gérard (Richard Berry) e a companheira deste.Tudo num perfeito fluir da vida burguesa na periferia de Paris.

No entanto, o fator de desagregação neste drama corrosivo vem do exterior, para desnudar fraturas e imperfeições, em relações supostamente estáveis, que escondem ressentimentos e acomodações. Surge na figura da franco-marroquina, de vinte anos, Lou Vallée (Leila Bekhti), nome apropriado para a vamp de olhar cativante, misterioso. Ela circula por ambientes sombrios que contrastam com os de Paul, sempre clean (branco/limpo), como dita a moda hoje.

Vallée representa os contrastes de classe

Vallée o envolve em histórias dúbias, misteriosas, revelando um passado de intrigas, abandono familiar e luta pela sobrevivência. Paul, acostumado à vida sob controle, vê-se atraído pela bela Vallée, em teias que o puxam para o submundo, o universo dos deserdados, das carências amorosas e da venda do corpo. Justo o que ele negligenciava, dado a seu distanciamento das realidades impostas por sua classe a mulheres dos baixos extratos como ela.

O espectador já viu esta história sob os mais diferentes ângulos. Mas o que conta aqui é a condução dada por Claudel: a divisão clara entre os ambientes e meios sociais, de classe, para tratar da tendência do burguês fragilizado desvendar seu lado sombrio. De estar no espaço que o torna presa da amada, cria das armadilhas de uma sociedade desigual, à qual pertence, mas que dela se alheia. Paul, confrontado por Vallée, torna-se possessivo, controlador, intolerante.

Porém, Paul se mostra incapaz de romper a torre de vidro que o separa de Vallée. Sua condição social o impede de descer ao nível dela e revelar sua paixão. É puro demais para tocá-la. Há nisto recalque cristão, vindo da pureza da mãe, do complexo de Édipo, nele introjetado. As diferenças entre eles, ditadas pela condição social e refletida nas roupas em tons sóbrios dele, e nos tons bordôs dela, herança cultural árabe, ditam seus estados psicológicos. Eles afloram nos gestos e nos olhares deles.

Paul e Lucie esperam a iniciativa do outro

Os dele são frios, de aparências, de fugir à paixão. Muitas vezes se exacerba, sem ao menos se revelar. Os dela são agitados, às vezes fortuitos, de enganos e subterfúgios. Ela se esconde em fantasias e fragilidades. Por isto não se encontram. As barreiras entre eles emanam de suas posições de classe, mas também de suas escolhas. Ela espera que ele rompa a couraça de vidro, ele que ela nada exija dele, como Lucie.

Ao contrário dos noir tradicionais, de trama intrincada, psicológicas, de ambição desmedida e amores doentios (“Chinatown”, Roman Polanski,1974), Claudel não se prende a ambientes fechados, prefere espaços abertos, de grande fluxo de pessoas e veículos, sem fugir a luzes e sombras. Sua câmera espreita, mas não interfere. Quando muito fraga o olhar pesaroso de Vallée em Paul, como se quisesse afrontá-los.

Ainda assim se detém no diálogo deles, quando ele, depois de longa procura, a encontra. Ela está em estado deplorável e destroçada na cama. Paul, ao seu lado, mostra-se pela primeira vez apaixonado por ela. Só a dor e a perda o faz romper, ainda que sob contenção, a barreira de vidro ainda existente. É daqueles instantes que vale mais a imagem que qualquer diálogo.

Esta brilhante sequência, importante para o espectador entender o impasse de Paul, é reforçada pela cena em que Lucie o surpreende ouvindo melancólica música árabe. Ela compreende, enfim, seu papel na vida dele e o quanto se tornou um simples e descartável enfeite. Ela apenas o olha e fica ali, silenciosa, reflexiva. Seria um desfecho de grande significado, porque Paul compreende, enfim, o quanto sua vida de segurança e conforto foi um terrível engano. Nada arriscou ou mesmo se apaixonou de verdade.

Entretanto, Claudel caiu no clichê hollywoodiano de incluir uma explicação policial, de serial killer (assassino em série), para as atitudes de Vallée, diluindo o impacto de sua paixão por Paul. Fica a impressão que Vallée renunciou a seus intentos para não ferir o amado, quando havia imperativos mais fortes e contendentes a fazê-lo. As diferenças de classe e de raça ainda bloqueiam as saudáveis relações amorosas planeta afora.

“Antes do Inverno”. (Avant L´Inver). Drama. França. 2013. 103 minutos. Montagem: Elisa Aboulker, Trilha sonora: André Dziezuk. Fotografia: Denis Lenoir. Roteiro/direção; Philippe Claudel. Elenco: Daniel Auteuil, Kristin Scott Thomas, Leila Bekhti, Richard Berry.



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