Na noite crescida, a coruja

Em pé, no pardo-escuro sob o telhado da casa de farinha, os homens não tiveram como evitar a cisma nos olhos dos três capatazes sentados no batente estreito da casa. Afora o relho nos pulsos, os três não precisaram erguer para trás a aba estreita do chapéu de vaqueiro, para ajuizar a reação dos camponeses com a repentina presença deles.

A mulher sentada ao lado do homem que a trouxera, penteara os cabelos; compusera-se para dar conta da graça mantida a custo com pó de arroz, e ainda gozando da mercê do capataz. Joaquim e Tonico, por serem os mais moços, ficaram do lado, recuados. O mais velho, com a mansidão que desentranhara os segredos da velha com os netos, estreitou os olhos e coçou a cabeça erguendo o chapéu de feltro. Não pareceu inconveniente inquirir os motivos das visitas. As barracas assentadas no vale, àquela altura no escuro quase inteiro da tarde finda, aguçavam-lhes o sentido de donos da terra.

Mas…

– Vocês vão ter que sair daqui – disse-lhes o troncudo, por certo o chefe.

– Qual é sua graça? – devolveu com mansidão na voz, o mais velho dos ocupantes, já desatento ao modo como deixara o chapéu na cabeça.

– Jesus.

– O meu é Valdevino. O senhor é homem do campo como eu sou. Sabe que nesse pedaço de terra a lavoura cresce sem ajuda de adubo. Não tem nada plantado nela a não ser o que a natureza trouxe com o rebolo do vento. Nós tamos aqui pra plantar e colher o que a terra não recusa.

– Não pode.

– Não pode é a gente ficar com a mão calosa e proibida de lavrar a terra. O senhor é o dono do Engenho Bento Velho?

– Não. Trabalho para o dono.

Os outros dois assentiram com a cabeça. Nenhum dos três cruzara as pernas ao sentar. A tensão pressentida predispusera-os a apoiar o torso no assento do tronco de coqueiro, mas com os joelhos curvados prontos para o finca-pé, em caso de atracação. A mulher, junto de Jesus, perdera o acanhamento; cruzara as pernas e olhava os interlocutores do parelho sem desviar os olhos inchados de curiosidade.

– Nós não vamos sair daqui, Seu Jesus. Se chover mais, melhor ainda. Os brotos de arroz vão dançar com os pingos da água. Daqui de cima, vamos espreitar com a trempa de fogo acesa.

– Tô vendo que o senhor não é fácil de conversar. Mas eu tenho um patrão. Faço o que ele manda.

– O senhor tem obrigação com o patrão. A terra é generosa com quem dela cuida.

A noite cobrira toda a fundura do vale. Os homens acenderam os gravetos secos na trempa. O café ferveu no bule de ágata. O odor insinuou-se no vale, misturando-se ao cheiro frio, brejoso, dos cogumelos de copa branca, marrom, na beira do riacho. A chirriada dos grilos, aqui e ali, o rouquejo de um sapo e a terra recendendo a vísceras à mostra de bichos mortos, adensavam ainda mais a tensão entre os homens. Nada lhes distraiu nos urdumes.

Valdevino serviu-se de café e ofereceu aos recém-chegados. A mulher levantou-se e trouxe da cozinha da casa, três canecos de ágata já com café coado pela velha que se mantinha na cozinha, junto com os netos. Longo silêncio se abateu no ar meio pestilento da noite. Nas rodovias ao lado e em frente, o trânsito de veículos tornou-se ralo. Um candeeiro com lume mortiço foi aceso na bandeja do forno da casa de farinha.

Súbito, o frio da noite crescida foi riscado pelo crujido rascante de uma coruja. Na cozinha, a velha teve um estremeção. Logo apareceu na porta da casa, olhou para cima e viu a coruja pousada na primeira telha da cumeeira.

– Veio me chamar, maldiçoada! – a voz da velha cresceu, presciente.

A coruja voou para longe. A conferência muda entre capatazes e camponeses foi agourada. A velha entrou na casa com sua mortalha, seguida pela filha. Os capatazes montaram nos cavalos. Os camponeses, arranchados no chão batido da casa de farinha, convieram que as cartas do baralho lhes trariam outra fortuna.

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