Algumas palavras sobre cultura e política (parte 6)

Na busca de explicações para as jornadas de junho, multidões primaveris no Brasil, invernais em muitos sentidos, foram localizadas muitas formas de vida competindo, expondo vozes nunca antes ouvidas pelas massas televisivas.

Muitos foram para as ruas a mando de poderes ocultos na disputa política e econômica (regional, nacional e internacional), outros foram manifestar sua descrença na política ou disputar pelo protagonismo como produção de moeda de troca. Enquanto o “pau comia” nas ruas entre black blocs (entre outros) e polícia, outras realidades eram construídas nas assembleias que a mídia não cobriu (Cf. Parte 2 desta série). As falas se voltaram então para questões setoriais ou de grupos sociais (como a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa ANCOP) ou agendas regionais (como o Ocupe Estelita em Recife e Espaço Comum Luiz Estrela em B.H), entre outros movimentos (Cf. artigos anteriores desta série).

As decisões em muitos desses espaços foram construídas historicamente pelos líderes intelectuais (orgânicos, naturais carismáticos, etc.), capazes de gerar unidade em grupos horizontais e sem lideranças, buscando narrativas comuns. Manifestos e decisões que se constituem como expressões das ideias vitoriosas nas disputas de discursos hegemônicos em detrimento das muitas vozes, presentes nas assembleias populares espalhadas pelo Brasil. Como podem tantos autores e imprensa afirmarem o que foi junho de 2013, se nem mesmo em assembleias existem consensos, onde podem ser respaldadas opiniões de que as jornadas possam ter qualquer unidade nacional?

No sentido das novas práticas políticas, os grupos que sentaram para conversar, ao invés de seguir nas manifestações com focos dispersivos (que promovem anarquia, no sentido tático da ação direita), reuniram-se para suas próprias demandas, mas não somaram a outras assembleias que, setorizadas e isoladas, não construíram um projeto político comum (ainda).
Ao contrário, as assembleias populares, assumidas pelos que já tinham voz e experiência política, sofreram do mesmo mal do Maio de 1968 francês, ao serem tomadas pelos mesmos de sempre. Ou seja, por líderes já moldados pelo sistema político, mais experientes, que dominam as partes das multidões induzindo-as ao retorno das mesmas práticas políticas que não promovem transformações reais, mas resolvem agendas pontuais.

Ilude-se quem acredita que outras alternativas nacionais para a política não foram construídas na direita. Na esquerda é que o solo foi arrasado, não sendo constituído no Brasil pós-jornadas de junho uma alternativa política como exemplo do M5S (Movimento 5 Estrelas), partido italiano de centro-esquerda liderado pelo humorista Beppe Grillo, de grande influência no processo eleitoral de 2013.

Não assumindo esse papel de alternativa política de oposição ao centro esquerda (já ocupada), as assembleias e movimentos divididos deram forças para outras oposições ao governo, sem colocar algo no lugar (quem sabe em outros sentidos estejam sendo construídas alternativas). Ainda que tenha sido uma visível perda estratégica dos movimentos, ao não adotarem causas como a mini constituinte para a reforma política, por serem agendas dos partidos da base aliada do governo, os movimentos assumiram outras pautas nacionais que não ganharam corpo político.

Os protestos pontuais em causas de nichos políticos conquistaram apoio graças a barulheira (no congresso, nas ruas, nas redes), se consolidando mais pela resistência aos ataques as liberdades e direitos fundamentais, do que propriamente se convertendo em avanços. Situação que revela a posição real dos movimentos sociais, que no fundo estão na posição de defesa e de resistência contra a marcha do conservadorismo das forças midiáticas, da opressão dos sistema judiciário, da polícia, dos ruralistas, da banca evangélica etc.

Apesar da adoção de formas disfuncionais, evidentemente não capitalistas, e até por isso com potencial revolucionário, tais movimentos não apresentaram abertamente a revolta declarada contra a opressão das novas formas capitalistas atualmente adotadas (o avanço da plutocracia). Os protestos não tiveram foco contra a opressão do sistema financeiro, mas em um de seus braços, a FIFA, que ao final foi o objeto das tensões.

Até que ponto o ataque ao evento esportivo não seria uma forma de expressar o descontentamento contra opressões estruturais? Os tipos de protestos contra o organizador da Copa do mundo de futebol no Brasil não deixam de ser uma resistência, ainda que desfocada, diante do grande problema, ao ser este um símbolo das incoerências resultantes da mídia terrorista, de bancos, da polícia, das remoções, das injustiças, e da roubalheira de empreiteiros e de políticos, que somam à especulação internacional (efeito colateral da COPA) contra o Brasil.

Outras ocupações já citadas deliberaram por novas práticas sociais de emponderamento destituinte do poder em favor da sociedade (por exemplo a República ocupação T.A.Z. na UFRJ). Enquanto movimentos passaram a se reunir para conversar, os mais rebeldes saíram em marcha solo, em defesa de suas próprias existências, seus direitos de se manifestar, clamando em julho de 2014 pela libertação de seus presos políticos.

Mesmo que não sejam reconhecidos pela maioria, nem considerados presos políticos por tantos outros, também marcharam pelos nossos direitos coletivos de manifestação, liberdade de expressão e direitos humanos. Até aqueles que depredavam e quebravam, no fundo, davam gritos que são coletivos, que expressam o pânico crescente nos centros urbanos, em uma demonstração de desrespeito ao Estado que lhe desrespeita cotidianamente.

A poeira assentou, a vida segue, quem sempre esteve nas ruas marchando voltou. A marcha pelas melhorias nos transportes ou pelo passe livre seguem, mas e o que restou da gritaria da Copa? Após as prisões de manifestantes no Rio de Janeiro (muitos conclamados pelas redes como inocentes), independentemente da pauta que carregavam, suas ações se transformaram em revoluções para si mesmos. Perdidos, ameaçados e sem apoio popular, restam outras razões para se manifestar que não seja a própria ocupação? A revolução será permanente? E o Estado de Exceção também? Vai durar mais 21 anos?

Os manifestantes (presos da copa), após serem libertados, afirmaram que a luta segue e avisam aos seus pares em entrevista (focando nas eleições), troquem as palavras de ordem por uma nova: “não vote, lute pela revolução” (Sininho em Exclusivo, 2014). Novos levantes, mas para quê mesmo? Ah sim, pelo direito de que todos possam se manifestar?! Mas não era só por 0,20 centavos? Pela COPA? Pela liberdade? Pela liberação da maconha? Pela autonomia do corpo? Agora será o voto nulo? Como Sartre, filósofo francês, a respeito das revoltas de maio de 1968, me pergunto, mas e as mudança de mundo que nos prometeram?

As causas, já não sendo mais nada além do que a própria defesa daqueles que se manifestam, convertem-se em um grande teatro, do qual já não existem mais propostas que não sejam o próprio espetáculo comandado pela estrutura política e midiática que se vale das ações, graças a sua capacidade infinita de se adaptar e converter tudo, até revoltas, em mercadoria.

Perdem-se narrativas e objetivos em troca da forma, mas antes em troca da assimilação do espetáculo pelos detentores do meios de produção de poder e conflito, que literalmente estão no comando das cordas das marionetes. O revolucionário midiático é apenas parte do show. Sabemos todos o que quer a plateia presente na arena como espectadora, deseja ser satisfeita ao final.

Ou seriam as novas ações revolucionárias permanentes tão radicais que até mesmo olhares de esquerda, treinados na dialética, estariam perdendo a oportunidade de perceber a potência devastadora das multidões? (Cf. Parte 1 desta série)

Seriam novas a ponto de poder reorganizar as forças sociais, unir o cognitariado (segundo BENTES, “precariado”), propor o “comum” utópico? A ação propagandeada pela nova classe revolucionária, divulgada pelos “midialivristas” será capaz de acabar com o modelo de política e Estado que temos no Brasil, através da cobertura (web) de atos e mais atos, transformando além de si mesmos, quiça o mundo?

Essa verve revolucionária estaria restrita ao campo intelectual, ou dos novos donos de meios de produção cognitiva? Vai chegar na população pobre e miserável como alguma ação transformadora? As ressignificações e mutações das Zonas autônomas temporárias (TAZ) têm potência de revolução cultural, ou alguma potência para fora da do simulacro? Sem a prática social, como replicadores das mais diversas formas de ativismo e conhecimentos que podem transformar o mundo, não indo diretamente nas comunidades carentes, podem transformar algo além de seus currículos “lattes” ou “likes”?

O conceito de primavera brasileira não só pelos resultados, práticas, mas pelo desfecho, vai se diluindo diante de tantas contradições e manipulações que vão sendo reveladas. Por outro lado, muito tem em comum a primavera brasileira com outras, em especial, com o Ocuppy Wall Street, “derrubado pelos egos, narcisismos” (FRANK, 2013), inoperância e falta de foco.

A exemplo aqui se repete a disputa de protagonismo (liderança negociando individualmente os frutos de todos os diferentes conflitos políticos em andamento), todos disputando pela hegemonia. Alguns assumindo o papel negociador de vantagens e benefícios, opondo-se a ação transformadora das práticas políticas, conforme as esperanças populares de todos aqueles que marcharam juntos em junho de 2013.

O foco que se espera de uma primavera na resistência ao sistema financeiro internacional, e em alguns casos no combate a líderes totalitários, se desfez diante da realidade política: Copa e Eleições. Não existem mais causas comuns, foi o que ouvi de uma ativista. Do qual respondi imediatamente: se não existem causas comuns então podemos encerrar com a humanidade.

Algo ainda nos une?

A dificuldade de foco dos movimentos sociais ao não se entenderem (ainda) não decorreria da multiplicidade de vozes? Não acumulam capital simbólico para a realização de algum plano popular transformador (comum)? Ou, na contra mão, já consideram a hipótese de que a potência e acúmulos de capitais simbólicos e econômicos promovem apenas novas relações de poder, migrando para as pontas e não mais nos centros? Já consideraram o retorno às bases, para a ação educativa e libertadora (Paulo Freire)?

E a polícia do Estado, ao não entender a divisão dos muitos em ação, pode seguir criminalizando a sociedade civil, chamando a todos de marginais e vândalos? Juiz sem provas pode manter na prisão ativistas com argumento de que seriam “esquerda-caviar”? Podem, sem inteligência, saber seus limites de atuação (na dinâmica proteção/repressão) com a sociedade civil organizada? Podem promover enfrentamentos onde agridem e prendem inocentes? Pode uma polícia comandada pelo governador, aliado da mesma imprensa golpista que armou o caos, ser desconsiderada como polícia política?

Enquanto os movimentos não se entendem, e o Estado (forças das três esferas) também não entenderem os manifestantes, a lógica do embrutecimento, da ação violenta, da ampliação do Estado de Exceção permanente avançam, pois são fruto da soma de todas as forças sociais. E as mentes sofredoras corroem-se com a opressão, que liberada podem se transformar em uma guerrilha, fabricada pela mídia terrorista e pelo Estado jardineiro (Cf. Parte 5 desta série). A quem interessa essa a instalação do terror na nação do carnaval, futebol e samba?

Prisões foram seguidas de vigilantismo policial nas redes, investigações de professores, listas de internet, projetos de mestrado, ongs, associação de pais de alunos e até o falecido anarquista Bakunin constam do inquérito. Com a entrada dos militares na reestruturação do Centro de Inteligência do Exército, os agentes que deveriam nos proteger de forças externas passam a monitorar os movimentos sociais. Novos questionamentos surgem, transformando o debate em outro mais urgente: que tipo de democracia e capitalismo estamos construindo?

AGAMBEN, Giorgio. Palestra Publica em Atenas: Por uma teoria do poder destituinte. (Convite e organização pelo instituto Nicos Poulantzas e pela juventude do SYRIZA). Atenas: 16.11.2013.

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