“O Menino no Espelho” Adoráveis brincadeiras

O universo infantil e suas fantasias são tratados com humor pelo cineasta brasileiro Guilherme Fiúza em filme cujos vilões são os integralistas

Eis um filme que se vale das encenações dos adultos para dar conta de seu tema: o universo infanto-juvenil e suas fantasias. A carga da pré-adolescência e o medo de crescer fazem o garoto de 10 anos, Fernando (Lino Faciolli), optar por um duplo Odnanref (seu nome ao contrário) para se entregar às estripulias com sua turma. Nesta tentativa à Peter Pan, ele descobre adultos que se entregam a rituais, regras e sonhos nada inocentes, num país que começava a se reinventar nos anos 30.

Com esta abordagem, baseada na obra homônima “O Menino no Espelho”, do escritor mineiro Fernando Sabino (1923/2004), o cineasta brasileiro Guilherme Fiúza Zenha dá conta das regras, rituais e sombras na Belo Horizonte dos anos 30. As brincadeiras de Fernando, Mariana (Giovana Ríspoli) e seu irmão menor lhe permitem desvendar o que havia atrás das cortinas do recato mineiro, do rigor da escola e da fachada de respeitabilidade dos militantes do integralismo. Tudo muito sutil.

O duplo de Fernando é dotado de desejo, de insinuações e dissimulação. Ocupa seu lugar no despertar da pré-adolescência para o que vai menos detrás dos muros e mais no escurinho do cinema com a prima Cíntia (Laura Neiva), vinda de São Paulo, para estudar medicina. E permiti a Fiúza Zenha traduzi-la na Lola (Marlene Dietrich), o objeto de desejo do professor Immanuel Rath (Emil Jannings) no expressionista “O Anjo Azul” (1930), do alemão Joseph von Sternberg.

Tons tépidos: clima e desejo

A própria estética de Fiúza Zenha, ancorada na eficiente fotografia de José Roberto Eliezer, contribui com seus tons tépidos e clima intimista para ressaltar o desejo. Os enquadramentos o reforçam, via planos aproximados e olhares e gestos de Odnanref e Cíntia. O lobo sobrepõe a lebre ardilosa. São também para ele as ameaças de interná-lo no Colégio Militar, feitas pela mãe Odete (Regiane Alves). Cruel ameaça aos jovens daquela época por mau-comportamento em casa, na rua e no colégio tradicional.

Esta duplicidade de comportamento e situações permitem ao espectador apreender as nuances de época e as zonas de escape de Fernando. Ele e sua turma, com a ajuda de Odnanref, matizam o perfil da sociedade mineira, dada às cortinas e sombras. Sua bisbilhotice o levam ao horror, recorrente às histórias de assombrações. O casarão, velha referência de bruxas e maldade, abriga os malfeitores, os fugitivos e os amaldiçoados. Uma ameaça às não tão inocentes crianças, a invadir espaço a elas bloqueado pelos invasores.

Neles se enquadram os fascistas da AIB (Ação Integralista Brasileira), que ali se escondem para seu ritual secreto, depois do golpe de estado fracassado, liderado por Plinio Salgado (1895/1975), em 1939, para derrubar o então ditador Getúlio Vargas (1930/1945). É um bom achado transformar personagens e momentos históricos em metáforas, mostrando a tentativa de repetir, no Brasil, “o ovo da serpente”. O cinema nacional raras vezes o faz (“Aleluia, Gretchen”, de Sílvio Back, 1976), para situar a tendência ao fascismo na década de 30. Fiúza Azena acerta ao fazê-lo.

“Anauê”, o riso e a inversão

Mesmo assim, Fiúza Zenha consegue incutir humor nesta sequências, a partir da confusão criada pelo irmão pequeno de Fernando. Os integralistas, liderados pelo reacionário Major Farias (Ricardo Blat), encerravam suas reuniões com a saudação anauê” (palavra indígena), imitação do “heil Hitler”, e o menino a repete em diferentes situações. Termina se tornando uma dica contra os integralistas e uma vergonha para os pais dele. Mas, também, uma forma de mostrar a tendência política da família.

A terceira vertente do filme é a própria família de Fernando, dada a liberalidades, mas também às repreensões e ameaças em “tom ameno”. Há nelas, no entanto, um verniz que esmaece por seu recatado comportamento e ausência de contradições. Enquanto, na verdade, são as fontes do temor de Fernando crescer, preferindo se manter criança. Fiúza Zenha e seus parceiros no roteiro, André Carreira e Christiano Abud, deixam esta fresta. As armadilhas dos anos 30 e as de hoje continuam sendo perigosas.

Em suas várias vertentes, o filme termina mesclando drama e humor para o público infanto-juvenil, acostumado a super-heróis cuja missão é salvar o mundo dos vilões criados pelos EUA. A dualidade Fernando/ Odnanref pode parecer a eles uma bela maneira de fugir às enfadonhas aulas, às pressões do que “você vai ser quando crescer” e a incisiva sedução consumista. Porém, os fantasmas enfrentados por Fernando e sua turma nem por isto deixam de ser menos reais e assustadores.

“O Menino no Espelho”. Comédia infanto-juvenil. Brasil. 2014. 90 minutos. Montagem: Alexandre Baxter, João Flores. Trilha sonora: Vinícius Calvitti. Fotografia: José Roberto Eliezer. Roteiro: Guilherme Fiúza Zenha, André Carreira, Christiano Abud. Diretor: Guilherme Fiúza Zenha. Elenco: Lino Faciolli, Mateus Solano, Regiane Alves, Giovana Ríspoli, Ricardo Blat, Laura Neiva.

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