"Jogo das Decapitações" Á beira da explosão

Em crônica sobre o Brasil atual, cineasta paranaense Sérgio Bianchi expõe a violência cotidiana, o confronto de gerações e suas tendências políticas

Os personagens dos filmes do cineasta paranaense Sérgio Bianchi se equilibram sempre no fio da navalha. E, invariavelmente, estão prestes a explodir. O ajudante Walter, de “Os Inquilinos” (2009), atormenta-se com a violência dos vizinhos, integrantes do PCC, o desnorteado Leandro (Fernando Alves Pinto), neste “Jogo das Decapitações”, descarrega suas frustrações no motorista que o culpa pelo acidente de trânsito. E, desta forma, Bianchi faz em imagens a radiografia do Brasil atual.

Se em “Os Inquilinos” denuncia a inutilidade das forças de segurança para proteger a população, deixando-a sob ameaça do crime organizado, “Jogo das Decapitações” vai mais longe. Faz a radiografia dos militantes de esquerda dos anos 60/70, da direita raivosa, sustentada pela mídia burguesa, e a classe média emergente. E atesta a pressão conservadora contra a luta por reparações e preservação da memória, defendida pela esquerda, para manter viva a resistência à ditadura militar.

Walter (Marat Descartes), a companheira Iara (Ana Carbatti) e os dois filhos vivem sob ameaças dos vizinhos, membros do PCC. Para complicar, ele sustenta a família com o “salário” ganho num emprego precário, sem carteira assinada. Diferente da vida do universitário Leandro, às voltas com sua tese sobre os desaparecidos durante a ditadura militar. A mãe, Marília (Clarisse Abujamra), ex-resistente, sustenta-o com os ganhos de sua ongue. E, no entanto, ele aos 30 anos, vive atordoado.

Leandro tende ao alheamento

Ele oscila entre a esquerda, a classe média tradicional configurada na Jornalista (Maria Manoella) e o emergente Rafael (Silvio Guindane), afrodescendente, seu colega de faculdade. Através deles, Bianchi configura as classes em conflito no pais atualmente. Leandro, em princípio, influenciado pela mãe, fica à esquerda, porém o comportamento dos amigos o levam a hesitar. Formam um trio que reage à violência cotidiana e as mudanças sociais em curso com cinismo, deboche e alheamento.

No entanto, a estratificação de classe feita Bianchi não é artificial. A Jornalista adota comportamento de classe média tradicional ao alhear-se aos conflitos sociais. Já o emergente Rafael prefere aliar-se a ela, ou seja à classe média. Ao invés de fortalecer a manifestação de seus colegas em frente à reitoria da USP diz que isto não leva a nada. Idêntica posição tem ao criticar os argumentos de esquerda da professora, dizendo que estão errados. Só Marília não lhe dá espaço para contestação de suas posições.

Diante de personagens que reproduzem na tela o que ouve e assiste no cotidiano, o espectador apreende as questões levantadas por Bianchi. A esquerda por ocupar posições de poder sofre pressões por implantar políticas compensatórias, preservar suas posições político-ideológicas e transformar sua resistência em memória (vide as Comissões da Verdade). São iniciativas configuradas em Marília, em Rita (Maria Alice Vergueiro), presa à cadeira de rodas, e no senador Siqueira (Sérgio Mamberti).

Marília preserva memória da época

O ápice desta configuração é a exposição montada por Marília sobre a tortura. É quando Rafael e Leandro a criticam por congelar o horror dos porões, reacendendo a sangue e cadáveres. Eles não conseguem entender o custo da democracia vivida por eles. Falta-lhes justamente a memória. Daí o choque entre mãe e filho: estão ali o passado de luta e o presente à direita. Porém, as escolhas dele são ditadas por outras influências. E se dividem em duas vertentes: a de hoje e a de ontem.

O ontem é feito através de filmes super-8, livros, recortes de jornais, imagens de TV. Representa outra face da época da ditadura militar (1964/1985). Os anos 60/70 são também os do Movimento Hippie, da flor e amor, da paz e sexo livre. Leandro em suas pesquisas para sua tese termina descobrindo romances e filmetes do ignorado Jairo Mendes (João Velho, na juventude/Paulo César Pereiro, na velhice). O que muda o rumo de suas pesquisas.

Ao fazê-lo, ele descobre o artista-provocador, autodestrutivo, com o qual se identifica. É puro niilismo, “desbunde”, como se falava na época. Jairo não se ligava a movimento algum. Quanto mais Leandro mergulha em seu passado, mais se identifica com ele. Torna-se, assim, um seguidor, mesmo com a resistência da mãe, que conheceu Jairo. Ao fazê-lo, perde o fio condutor de antes e aproxima-se das posições dele. Torna-se outro.

Bianchi torna seu filme um bom espelho dos anos 60/70, unindo as duas vertentes da resistência: uma militante, hoje na terceira idade, outra provocadora, delirante. Uma continua sua resistência por outros meios, a outra emerge de forma alegórica, surreal às vezes. Jairo, escritor, cineasta, é franco-atirador, figura hoje esmaecida. Bianchi, assim como não poupa a esquerda, por suposta autorreverência aos seus anos de luta, insurge-se contra a direita raivosa por ser contra tudo vindo da esquerda e os emergentes por aliar-se a quem nega-lhe espaço. Sobra para todos.

Jogo das Decapitações”. Drama político. Brasil. 2O13. 96 minutos. Montagem: André Finotti. Som: Geraldo Ribeiro. Fotografia: Rodolfo Sanchez. Roteiro: Francis Vogner, Eduardo Benain, Sérgio Bianchi. Direção: Sérgio Bianchi. Elenco: Fernando Alves Pinto, Clarisse Abujamra, Maria Manoella, João Velho.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor