Algumas palavras sobre cultura e política (Parte1)

A Copa do Mundo de futebol de 2014 no Brasil, entre tantos “legados”, deixará marcada no simbólico de uma geração de espectadores e de alguns manifestantes a imagem de que a sociedade civil existe (mesmo que não tenha a cultura de se manifestar politicamente) e, às vezes, até se levanta, não apenas para fazer ôla, mas também para tomar as ruas.

Porém, essa mesma sociedade reproduz símbolos do passado como o #giganteacordou, para logo em seguida voltar a dormir, gigante que muito em breve não será mais lembrado. No após Copa do mundo e Eleições Presidenciais de 2014, diversas das razões que motivaram o apoio midiático aos levantes terá desaparecido, e novos factoides terão de ser criados, caso não existam reclamações contundentes que movimentem toda a sociedade em algum tipo de causa com ampla comoção. Diante dessa realidade, os manifestos dos mais variados seguirão existindo, mas sem cobertura da grande mídia que só divulga as estratégias dos grupos de interesse aliados.

A agitação, revoltas, levantes, protestos pacíficos e violentos fazem parte da vida social, portanto não se deve ignorar a naturalidade dessas manifestações, tampouco a baixa adesão das diversas camadas da população. A maior prova de que a Copa não seria e não é problema para a ampla maioria dos brasileiros pode ser sentida no clima empolgante nas festividades, nas ruas e postagens nas redes sociais. O caso em questão #NaoVaiTerCopa, levado a ferro e fogo por articulistas que defendem que o Brasil inteiro estava contra a realização do campeonato, não se comprova. Uma piada pronta, como o comentário do colunista Simão, na rádio Band News (25 de junho de 2014), se referindo ao pronunciamento de manifestantes de que protestos contra a Copa em Brasília teriam acabado antes do horário previsto para que pudessem assistir ao jogo do Brasil, porque “ninguém é de ferro”.

O objetivo aqui, não é, obviamente, deslegitimar manifestações, dando voz aqueles que cercam manifestantes e os desmoralizam, removem famílias, promovem prisões arbitrárias de ativistas com justificativas das mais absurdas, ao contrário, acredito que onde exista povo reclamando, existe um regime desigual que necessita de ajustes. Tampouco entrarei na armadilha que alguns leitores e articulistas têm caído: de acreditar que quem critica o governo é da P.I.G e quem defende é Petralha, as coisas não são simples assim. E para quem se adianta ao afirmar que na atualidade temos o pior dos regimes, gostaria que pudessem com absoluta certeza afirmar em que momento o Brasil esteve melhor? Quem tiver respostas claras e não apenas opinião ideológica ou rancor que se manifeste, preferencialmente com dados e artigos, pois de opinião rasa já chega Azeredos, Casois, Sheherazades, Lobões, Mainardis, Olavos e outros.

As acusações de que vivemos em um regime de exceção, autoritário e de que existem desigualdades regionais, de classe, gênero e cor procedem. O caso é, na opinião de alguns, que a marca deste governo teria o crescimento do clima autoritário não apenas no executivo, mas especialmente no legislativo e no judiciário. A esquerda e movimentos sociais “afirmam” que não existe um diálogo efetivo e a direita acusa o governo de impor uma “ditadura comunista”. Essas acusações de autoritarismo não seriam apenas a marca atribuída ao nosso tempo. Infelizmente as impressões sobre a condução opressora da nação não se trata de uma exclusividade da atualidade, mas, na realidade, isso é apenas o nosso saldo histórico de injustiças e desigualdades desde que abarcaram por aqui portugueses, há mais de 500 anos.

A percepção de que vivemos no caos, na corrupção, na degradação social, não é infundada, mas não na dimensão propagandeada, forjada de forma espetacular pela mídia, capaz de iludir devido a aceleração do acesso a informação (resultado da lei de transparência, ampliação da imprensa livre e redes sociais). O volume de informação provoca a sensação de vertigem, tendo muitas vezes como resposta de boa parte da população a negação histórica de quem somos. Assim, a frase estampada em uma marca de roupas “Abaixo Esse Brasil Atrasado” corresponde a visões de nacionalidade fundada na negativamente, através de um imaginário histórico colonial e eurocentrista, que não reflete a realidade e prática do povo, portanto hipócrita e moralista. No fundo, o Brasil é apenas o que é (pro bem e pro mal e ainda assim parece o mundo nos ama), e a política simples reflexo da construção consensual da sociedade (Habermas).

A realidade que emergiu das ruas pode ser considerada como uma renegociação de grupos descontentes diante de abundancia e opulência dos gastos com a Copa, perante as desigualdades, contrastando nitidamente com a opressão, como remoções de moradores no entorno das obras estratégicas, violência e repressão policial diante de manifestações, situações entre tantas outras que levaram a um levante, e, em muitos casos, mais do que justos (outros não). Conflitos que necessitam serem debatidos, tanto por aqueles que desqualificam as manifestações, como por aqueles que se valem destas para outros fins, como pelos que defendem fervorosamente, quase religiosamente, os mais diversos manifestos. Importante lembrar que as ruas sempre foram ocupadas, seja por conflitos em comunidades, pela busca de melhores salários, a luta pela terra, seja pelas festividades.

Nesse sentido, é necessário verificar as particularidades e quais grupos de interesses atuam sobre certa visão negativa dessa tomada das ruas. Não à toda, vários movimentos populares consolidados se retiraram, conforme veremos ao longo dessa proposta de reflexão.

A parcimônia nas posições dos diversos atores políticos seria necessária devido ao esgotamento que a mídia provocou com a super exposição e inflacionamento de um tipo específico de atos violentos em detrimento da cobertura de todos os outros tipos de atos públicos que ocorreram durante esses levantes populares. A crise de diálogo se consolidou e acirrou as disputas sociais, exigindo distensão ou ruptura, opção última daqueles que querem ganhar tudo aquilo que seus oponentes têm, naquilo que Sartori chama de “política soma zero”.

A divisão nacional chegou a um limite onde a maioria mesmo apoiando um governo mais social e popular se vê oprimida por grupos intensos (Olson), ora vinda das elites procurando regimes mais conservadores, ora da extrema esquerda lutando por protagonismo (sem considerar os intelectuais e anarquistas que não acreditam em regime algum). Se fosse seguido o caminho percorrido por aqueles que pretendiam derrubar o governo fora da previsão constitucional, que se dá através do voto, mas, ao contrário, através de um golpe branco, o Brasil teria seguido meio caminho para uma guerra civil.

(continua na próxima coluna)

 

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