A espoliação invisível

“Os ratos anestesiam enquanto estão mordendo”



(“Fidel Castro, biografia a duas vozes”, Ignácio Romenet)


 

Devemos analisar com atenção e olhos críticos os números do balanço de pagamentos do Brasil relativos ao ano passado divulgados pelo Banco Central (BC), de forma a enxergar por trás da contabilidade fria e aparentemente inofensiva das transações correntes com o exterior as relações sutis da exploração imperialista a que a classe trabalhadora do nosso país continua submetida, apesar da mudança do cenário político; e compreender a espoliação silenciosa e invisível que, embora possa não parecer, ainda constitui um sério obstáculo ao crescimento da economia e ao desenvolvimento nacional. 



De acordo com as estatísticas do BC sobre as contas correntes do balanço de pagamentos, durante o ano de 2006 as remessas de lucros e dividendos das multinacionais para o exterior cresceram de modo extraordinário, alcançando o valor recorde de 16,354 bilhões de dólares, 28,9% maior do que o registrado em 2005. Um valor que superou, pela primeira vez desde 1973, o pagamento líquido de juros, que diferentemente encolheu 16,5%, fechando em US$ 11,267 bilhões. Isto configura uma mudança estrutural no passivo externo do Brasil, conforme observou o jornalista Alex Ribeiro no jornal ''Valor'' (26-1). Tal passivo é composto basicamente pelo conjunto dos investimentos externos realizados pelo capital estrangeiro no país, seja diretamente na economia, seja de forma indireta (através de empréstimos). Por um lado, houve ''queda da dívida externa'' (ou do estoque de empréstimos contraídos no exterior) e, por outro, expansão dos investimentos estrangeiros diretos, assim como das aplicações em ações e títulos de renda fixa.


 


Privatizações e câmbio


 


É possível citar mais de uma causa para explicar esta evolução da conta corrente, que está longe de favorecer os interesses nacionais. Em primeiro lugar cabe destacar o processo de liberalização, privatização e desnacionalização da economia, realizado durante os governos Collor e FHC, que obviamente resultou na ampliação do estoque de capitais estrangeiros (diretos) no país, elevando naturalmente o montante de lucros e dividendos remetidos às matrizes das multinacionais aqui instaladas.


 


Convém notar que a mudança estrutural do passivo externo não começou ontem. O jornalista Lauro Jardim lembra em reportagem para o ''Brasil de fato'' (www.brasildefato.com.br) que entre 1984 a 1993 ''as filiais de empresas estrangeiras em operação no Brasil enviavam a suas matrizes ao redor de 1,3 bilhão de dólares por ano, em média, a título de lucros e dividendos'', quantia relativamente modesta. ''A farra das privatizações e a invasão do mercado brasileiro pelas transnacionais, que se seguiram àquele período, transformaram radicalmente o cenário. As remessas de lucros, nos 10 anos seguintes, mais do que triplicaram, saltando para uma média anual de praticamente 4,3 bilhões de dólares.''


 


Os 16,35 bilhões de dólares do ano passado surpreenderam e escandalizaram os observadores ao superar todas as previsões (o Banco Central projetou US$ 12 bilhões).


 



Outra causa do fenômeno reside na depreciação do dólar e valorização do real, que eleva automaticamente o valor em dólares dos investimentos externos diretos realizados no Brasil e também dos lucros, no momento de conversão das moedas. O valor do estoque de investimentos diretos mais que dobrou desde 2002, passando de US$ 100,8 bilhões no final daquele ano para US$ 217 bilhões em junho de 2006. Os novos investimentos no período (voltados, em boa medida, para aquisições) somaram 62,1 bilhões de dólares, de modo que mais de 50 bilhões de acréscimo no valor do estoque devem ser atribuídos aos efeitos contábeis da valorização do real.


 



Já a dívida externa, cujo valor em reais caiu em função da depreciação do dólar (revelando os efeitos contraditórios da valorização do real), registrou queda real e nominal no mesmo período. Recuou mais de US$ 40 bilhões, fechando em US$ 168,8 bilhões em dezembro de 2006. Por isto, as remessas de lucros e dividendos passaram a superar o valor do pagamento líquido de juros, o que tende a se repetir ao longo dos próximos anos.


 



Liberalismo


 


Certamente o exuberante liberalismo em relação às remessas também ajuda a explicar a farra dos lucros apropriados pelo capital estrangeiro. De acordo com Lauro Veiga Filho (também do ''Brasil de fato'') ''desde 1996 as saídas de dólares, executadas por filiais de empresas e grupos transnacionais, sob a forma de lucros e dividendos, não recolhem um único tostão de impostos. São isentas tanto do Imposto de Renda quanto da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), criada originalmente para financiar o sistema público de seguridade social''.


 



Tamanha liberalidade transformou nosso país num ''verdadeiro paraíso fiscal'', conforme observou Veiga Filho, e tem significado uma renúncia fiscal de bilhões de dólares, o que não deixa de parecer espantoso quando se considera o apetite do Leão sobre a renda dos nativos (empresários e trabalhadores), que reclamam com carradas de razão da pesada carga tributária (equivalente a 37% do PIB em 2006).


 



A ideologia dominante, inclusive em setores relativamente amplos da nossa esquerda, obscurece o significado desta sangria para o desenvolvimento nacional. Afinal, para a burguesia nada existe de mais sagrado sobre a face da terra que o direito ao lucro capitalista. Prevalece a opinião de que não podemos alimentar qualquer preconceito em relação a isto, do contrário corremos o risco de afugentar investimentos e inviabilizar o crescimento da economia. Reza o neoliberalismo, em nome do crescimento, que ao capital estrangeiro tudo deve ser permitido. Ocorre que tais idéias – como disse Cazuza – não correspondem aos fatos.


 



De resto, a classe trabalhadora não tem razões para pensar da mesma forma. Karl Marx já demonstrou que o lucro provém da exploração da força de trabalho; é o fruto do trabalho excedente realizado no processo produtivo; é o filho pródigo da sua famosa mais-valia. No caso, quando estão em questão os lucros apropriados pelo capital estrangeiro (incluindo juros), a exploração da classe trabalhadora se transmuta em espoliação da renda nacional. Trata-se de um excedente do trabalho nacional apropriado pelas potências imperialistas.


 



Com efeito, esses lucros constituem parte (e parte significativa) da poupança nacional. Na medida em que são remetidos para o exterior e têm seu destino definido nas matrizes das multinacionais, esta poupança deixa de ser investida internamente, acarretando a redução da taxa de investimento doméstico.


 



Conforme ensinam os manuais de economia política, o investimento é a força motriz da expansão econômica. A China cresce à razão de 10% ao ano porque investe cerca de 40% do PIB. A queda das taxas de crescimento no Brasil a partir dos anos 1980 foi precidida por uma forte redução das taxas de investimentos, computadas pelo IBGE como Formação Bruta de Capital Fixo – FBCF. A FBCF correspondeu a cerca de 25% do PIB na década de 1970 (quando ocorreu o chamado ''milagre brasileiro'') e caiu acentuadamente a partir dos anos 1980, quando teve início o que o economista Márcio Polchmann classificou de ''crise do desenvolvimento nacional''.


 



Taxar os lucros e restringir as remessas


 



A relação perversa entre a sangria da poupança nacional pelo capital estrangeiro, reflexo da lógica da reprodução imperialista do capital, ficou mais evidente para as lideranças populares e representantes das forças progressistas e patrióticas ao longo da chamada crise da dívida externa, que eclodiu em 1982 e atravessou duas décadas. Durante muitos anos as remessas de lucros e dividendos representaram menos de um quinto do pagamento de juros, conforme sublinhou o jornalista Alex Ribeiro.


 



Por isto, não pareciam constituir maior problema. Os investimentos externos diretos (considerados produtivos, o que nem sempre corresponde à verdade, especialmente quando são destinados à aquisição de patrimônio nacional, público ou privado, pelo capital estrangeiro) eram reputados como favoráveis ao desenvolvimento e recebidos com simpatia e pouco senso crítico.


 



A realidade mudou. É preciso reconhecer que a carga da dívida externa foi aliviada (principalmente pela apreciação cambial) e a possibilidade de uma crise maior do balanço de pagamentos parece remota. O país dispõe de um nível relativamente confortável de reservas em divisas fortes e o saldo da balança comercial afasta a hipótese de turbulências cambiais em curto e talvez mesmo em médio prazo.


 



Não obstante, a sangria da riqueza nacional provocada pelo capital estrangeiro continua em alta e constitui um sério obstáculo ao crescimento da economia, já que reduz a poupança disponível para investimento interno. Já não vivemos uma crise da dívida externa (muito embora esta não tenha deixado de existir e de constituir um problema). Em contrapartida, a explosão escandalosa das remessas de lucros e dividendos indica que o passivo externo não deixou de ser um obstáculo ao crescimento.


 



A análise crítica do balanço de pagamentos revela uma espoliação silenciosa e invisível da poupança ou do excedente do trabalho nacional, o que justifica a citação de Fidel Castro reproduzida no inicio deste artigo. Como os ratos, os grandes capitalistas estrangeiros também anestesiam enquanto mordem. Anestesiam a consciência nacional, disseminando através da mídia capitalista a falsa idéia de que, a seu modo, promovem o bem da nação e são indispensáveis ao desenvolvimento, enquanto prosseguem mordendo, agravando a sangria e intensificando a espoliação imperialista, uma espoliação silenciosa, invisível, que só se revela através de uma análise crítica da realidade, da negação do senso comum e da rejeição do pensamento burguês dominante.


 



A burguesia brasileira não tem razão para criticar os lucros do capital estrangeiro, embora não deixe de ser afetada pelos reflexos disto no crescimento interno. Afinal, multinacionais brasileiras (poucas, é bem verdade) também estão se acostumando a extrair rendimentos no exterior. Em 2006 repatriaram 947 milhões de dólares em lucros e dividendos.


 



Cabe aos representantes da classe trabalhadora estudar e compreender com maior profundidade o que está ocorrendo, a fim de desvendar e denunciar a espoliação invisível e exigir soluções. Somando as remessas das multinacionais ao pagamento de juros verificamos que os lucros repatriados pelo capital estrangeiro, decorrentes do estoque de investimentos diretos e indiretos, ao longo de 2006 alcançaram 27,6 bilhões de dólares. É uma quantia fabulosa, maior que os 68 bilhões de reais previstos no Orçamento da União para investimentos no PAC em quatro anos. Num caso e noutro estamos falando de poupança nacional e possibilidade de investimentos internos, por isto a comparação é justa.


 



É doloroso constatar que o problema ainda não recebeu a devida atenção dos movimentos sociais e partidos progressistas. Não se justifica uma atitude de avestruz neste caso. É preciso também estar consciente de que os interesses envolvidos são poderosos. Cumpre recordar, a este respeito, que a questão da remessa de lucros pelas multinacionais foi uma causa relevante do golpe de 1964. Agora, é preciso atentar para a reação raivosa às nacionalizações e restrições ao capital estrangeiro que estão sendo impostas por Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia. O pensamento dominante procura caracterizar as iniciativas anti-neoliberais desses dois governantes como ''retrocesso'' e ''contra-senso'', mas a vida está relevando outra coisa. Vamos aos fatos.


 



Parece que os investidores estrangeiros se afastaram da Venezuela, mas o país de Hugo Chávez teve o melhor desempenho econômico da América Latina em 2006: cresceu mais de 10%. Já a Bolívia com Evo Morales obteve no mesmo ano um superávit fiscal que não via há décadas, graças ao aumento da arrecadação propiciado pela anulação e renegociação dos contratos impostos pelo capital estrangeiro durante os governos neoliberais, enquanto a Argentina (contra todas as previsões neoliberais) cresce à razão de 8% desde a (e graças à) moratória de 2001 e ao calote da dívida externa.


 



A história está premiando a rebeldia. Sejamos também rebeldes. A conciliação de classes e capitulação frente aos interesses dos capitalistas estrangeiros nunca deram bons frutos na América Latina. Os movimentos sociais e os partidos progressistas devem batalhar por medidas corajosas contra a espoliação silenciosa da poupança nacional. Nada justifica a renúncia fiscal sobre as remessas de lucros e dividendos. Na verdade, nem mesmo o regime militar (apesar de ter alterado a lei das remessas de lucros do governo Goulart por imposição dos EUA) foi tão generoso com as potências imperialistas neste aspecto.


 



O mínimo que se deve exigir contra a espoliação invisível do trabalho nacional excedente, enquanto não se criam condições para revisão das privatizações e redução do estoque de investimentos (e dos passivos) externos, é uma forte taxação das remessas e a vinculação das receitas obtidas por este meio a investimentos na geração de emprego, valorização do trabalho e crescimento econômico.

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