Inundação

O ramo de papoulas, tão viçoso quanto a gameleira que lhe dava sombra, por certo ouviu o gemido da caminhonete que estacionara na orla da floresta. A gameleira nem tanto, visto que as centenas de cepos sustentando a enorme copa, davam conta de uma rochosa adesão ao chão duro de raízes, e assim mesmo pronto para novas semeaduras. O Fargo, tão exausto quanto a corcunda de Antônio Melício, estacionara soltando guinchos entre as fendas em retângulo, de um lado e de outro da capota do motor.

 – Desce todo mundo! – ordenou Antônio Melício, depois de apear do estribo ao lado do volante.

Fabrícia dos Santos também tinha um arco nas costas, àquela altura tão redondo que os peitos não careciam de sutiã para dar apoio aos mamilos mirrados. A filha já passara dos vinte e cinco anos. A prenhez dos primeiros meses, em vez de entesar o busto, arqueara mais ainda o costado escasso. Fosse pela prenhez ou pela ausência do parelho que fugira para não ter que casar, certo é que Augusta dos Santos tinha o rosto de um branco vincado de cima a baixo, com manchas marrons, feito sinais imprecisos.

Da carroceria de madeira, Feliciano, o filho mais velho, foi o primeiro a descer para ajudar o casal mais novo de irmãos, com doze e treze anos, feições anêmicas, acentuada dependência do pai e da mãe nos modos, por conta do parto temporão.

Toda a família se abrigou sob a gameleira. As crianças, vendo os pais atentos às águas desrepresadas da barragem, agarraram-se aos cepos cujo diâmetro cabia em suas mãos. O ramo de papoulas fora poupado dos passos e pés desengonçados dos seis. E a chuva vinda da infinitude plúmbea acima da copa da gameleira, inda que fina, guinchava chorosa e vingativa, feito as águas soltas da barragem.

O vale abaixo, independente das estações, cobria-se todo ano da vegetação fechada do mato, da floresta com gameleiras com mais de vinte metros de altura. Entre as duas orlas do matagal, a estrada de piçarra vermelha deixava-se ondular conforme os cortes onde a vegetação se mostrara menos inóspita. Abaixo, de onde viera a família de Antônio Melício, Petrolândia fora evacuada para dar lugar ao curso ininterrupto das águas da Barragem de Itaparica. Os seis viviam do que podiam roçar num hectare de terra, a pouco mais de cinco quilômetros de Petrolândia. A terra fora arrendada, não lhes pertencera. O dono, com a escritura, fácil obteve empréstimo no banco para a compra de outra casa, em Petrolina; casa pequena, inda que com acomodação bastante para uma família com recursos médios. Antônio Melício, sem posses nem outros recursos, sequer foi a um banco, nunca trocara palavra com algum gerente. Petrolina, distando 250 quilômetros dali, em linha reta, e 360 numa viagem de quase cinco horas. Também não conseguira se inscrever na lista do governo para se tornar morador de uma casa em Nova Petrolândia.

– A água já ocupou a rua da feira. O armazém de Miguel, a barbearia de Felinto Broca, até a casa do padre Aroucha, tudo foi invadido pela água.

Antônio Felício saíra do hectare onde plantara inhames e feijões, sem acreditar que também as covas onde deixara as manivas para a mandioca, seriam cobertas pelas águas.

O curso das águas, lento, só às cinco da tarde mostrou a superfície barrenta, gelatinosa, em torno da torre da igreja. A cimeira da cruz parecendo uma bênção divina a quem se deixara se despossuir dos bens já velhos, por isso mesmo entranhados na memória de cada um.

Ninguém chorou, a não ser Augusta dos Santos cuja palidez do rosto úmido da chuva, não se alumiou quando o pai disse que em Tacaratu, a quinze quilômetros dali, ela podia parir o filho do pai sumido.

– Queria que Firmino estivesse aqui – disse, lembrando-se do namorado.

– Nós tamos arribando das águas. Seu namorado arribou pra não casar com você – disse o pai.

Sob a gameleira montaram acampamento. Fizeram fogo para cozinhar o músculo de boi temperado na véspera. Augusta dos Santos não quis comer, mesmo com a insistência da mãe. Dormiu embalada com o perfume das papoulas. De manhã, gemeu com o começo das contrações.

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