“Filomena” Fraturas da Fé

Em filme sobre a crise da Igreja Católica, cineasta inglês Stephen Frears trata da perda de confiança na Instituição e o conflito entre metafísica e materialismo

O cineasta inglês Stephen Frears (“Minha Adorável Lavanderia”, 1985) volta às abordagens espinhosas, neste “Filomena”. O fato detonador da narrativa é a história da personagem-título (Judi Dench), uma enfermeira-aposentada que, 50 anos depois, decide procurar o filho, adotado por um casal desconhecido. Mas o tema central, que se desdobra em vários eixos, é sua fé, reforçada pela Abadia das Irmãs do Sagrado Coração, em Roscrea, Irlanda, onde viveu na adolescência.

É a fé que a faz suportar os castigos impingidos pela Superiora Irmã Hildergarde (Barbara Jefford), por achá-los condizentes com a “vontade” de Deus. Inclusive ser punida por ficar grávida de um desconhecido, durante um passeio pelo parque de diversões. E, por sorte, ela e o filho Anthony sobreviveram ao parto, feito pelas próprias noviças. Três anos depois, o menino é levado num carro luxuoso, junto com sua amiguinha Mary, sem explicação alguma.

Este é, em suma, o leitmotiv do conflito religioso, metafísico, que a faz debater-se entre a fé e o desejo sexual. Ainda que respeite a Igreja Católica, ela não se arrepende da relação amorosa, nem a vê como pecado suficiente para ser punida com a perda de Anthony. “Depois do sexo, pensei que qualquer coisa tão boa deveria ser errada. Porque Deus nos daria um desejo que não quer ver desfrutado?”.

Abadia silencia sobre Anthony

Seu contraponto é o jornalista Martin Sixsmith (Steve Coogan), que, desempregado, decide escrever sua história e, juntos, mergulham no convento onde ela viveu. E, para a surpresa de ambos, ao invés de encontrar ajuda para localizar o filho, veem-se enredados numa teia de mistério, sabotagem, mentira e despiste. Ele, ao percorrer os fundos da Abadia, onde há cruzes e lápides, descobre que ali estão enterradas crianças e garotas mortas em razão de parto mal feito e do extremo rigor da Irmã Hildergarde.

No entanto, é quando ela e Sixsmith se encontram em Washington, para onde vão para, enfim, encontrar Anthony, que as armações da Abadia se evidenciam. O Michael A. Hess que localizam via Internet fora um influente advogado republicano, integrante do Governo Ronald Reagan. E Filomena Lee recebe a má notícia do que lhe aconteceu com uma serenidade que surpreende Sixsmith.

A partir daí, sua busca dos vestígios de Anthony/Michael, torna-se dolorosa. O que eles descobrem é um mundo de cobiça, perversidade, venda de crianças e o silêncio sepulcral da Igreja Católica. Não só a Abadia, como a Agência de Adoção do Sagrado Coração, em Cork, e a Comissão de Adoção Irlandesa contribuíam para adoção mercadológica, a mil libras por criança. Filomena foi vítima desta trama, mas não perde a fé, nem a confiança na Igreja.

Sixsmith vai, aos poucos, confrontando-a com a realidade, expondo-lhe sua visão ateísta/materialista. Principalmente quando ela culpa a si, não a Abadia pelo que aconteceu a seu filho. A resposta dele é, ao mesmo tempo, lucida e punitiva: “A Igreja Católica é quem tem que confessar não você”. E acrescenta:” Você não precisa de religião para viver uma vida equilibrada e feliz”, ao que ela responde: ”Em que você acredita? Em apontar os erros dos outros? Em ser um sabe tudo? Tirar fotos a hora que quiser?”.

Superiora não se desculpa

O resultado deste confronto surge na breve sequência do confessionário. Frears mantém sua câmera atrás do sacerdote, vendo-se apenas a face dela. O sacerdote lhe pede para confessar e ela o deixa falando sozinho. Termina ali o temor de Filomena à autoridade da Igreja, não sua fé. Isto mostra que a religião é a fé organizada, segundo dogmas, preceitos e liturgias, difundidos teologicamente. Ela bem o demonstra ao perdoar a ex-Superiora Hildergarde, por não ter de subordinar-se mais a ela.

Hildergarde, porém, resiste às acusações de Sixsmith, ao invés de penitenciar-se: “Eu mantive meu voto de castidade minha vida inteira. Abnegação e mortificação da carne são o que nos levam para mais perto de Deus. Aquelas garotas não podem culpar a ninguém além delas mesmas e sua própria incontinência carnal”. E conclui a altercação com ele, confrontando-o:O Senhor Jesus Cristo será meu Juiz, não homens como você”. E ele a contesta: “Mesmo? Porque acho que se Jesus estivesse aqui iria te derrubar dessa cadeira de rodas e você não iria embora andando”.

O que se depreende deste filme, intercalado de flashbacks de Filomena jovem e Anthony criança, e estruturado em planos fixos, é a impressão de que Frears não está interessado na religião em si, mas no que a Igreja Católica se transformou (e não só ela, também as protestantes). Tornou-se parte da superestrutura capitalista, defendendo posições burguesas, conservadoras, atrasadas, a ponto de se confundir com o Estado burguês. Assim, a decadência deste sistema arrastou-a para a crise moral, ética, sócio-político-econômica, que hoje atravessa.

“Filomena”. (“Philomena”). Drama/religião. Reino Unido. 2013. 98 minutos. Edição: Valerio Bonelli. Música: Alexandre Desplat. Fotografia: Robbee Ryan. Roteiro: Steve Coogan/Jeff Pope, baseado no livro “A Criança Perdida de Filomena Lee”, do jornalista Martin Sixsmith. Direção: Stephen Frears. Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Barbara Jefford, Peter Olsson, Michelle Fairley.

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