“Ela” Muletas virtuais

O universo virtual, suas ferramentas e aplicações nas relações afetivas são discutidas neste filme do cineasta estadunidense Spike Jonze

Eis um filme que dialoga com o presente, como se estivesse no futuro. “Ela” trata do cotidiano de bilhões de internautas do planeta, com suas redes, conexões e acessos virtuais via web. O cineasta estadunidense Spike Jonze (“Quero Ser John Malkovich”, 1999) trata, numa Los Angeles futurística, da utilidade da ferramenta virtual para ajudar o ser humano a escapar à solidão e à frustração amorosa. Faz isto com humor, leveza e criatividade. Às vezes o espectador tem a impressão de que o virtual é o real e vice-versa.

Principalmente quando Theodore Twombley (Joaquin Phoenix), escritor de cartas virtuais, se vê sozinho depois de divorcia-se de Catherine (Rooney Mara). Salvo os encontros com os casais-amigos, ele se tranca em seu quarto, corroendo a separação. Surge então o programa OS1, do Sistema Operativo de Inteligência Artificial para socorrê-lo. Através do fone de ouvido e da câmera do celular, ele põe Theo em contato com a persona virtual de Samantha (Scarlett Johansson), para afugentar sua solidão.

O silêncio e o vazio são preenchidos por uma voz doce, afetiva, que, aos poucos, se torna amiga e confidente. No início, ela cuida de sua correspondência, depois de sua carência amorosa. Jonze joga, aqui, com a utilidade da teia virtual para o ser humano. E entrelaça a multiplicidade de meios virtuais, das redes sociais aos chats, dos e-mails ao celular, para ampliar as comunicações pessoais. Samantha é o meio, pois ao estreitar a relação com Theo deixa de ser apenas uma ferramenta para substituir Catherine.

Samantha tem sensibilidade

Além disso, ela é dotada de sensibilidade, emotividade e é suscetível à excitação sexual. Na “transa” com Theo emite sons e “imagens”, como se estivesse ao telefone (“Short Cuts – Cenas da Vida, 1993). Jonze em elaborados travellings, cortes rápidos, matizados por acordes de violão, faz sua câmera girar enquanto Theo passeia pelo shopping, calçadas, ruas, praia, escutando-a. Está feliz, como nunca esteve. Os olhos dele brilham, seu sorriso é enternecedor, ela “existe”, enquanto o aprisiona.

Jonze, no entanto, não se deixa levar pela utilidade do universo virtual, tece corrosivas críticas a seus programas. Notadamente quando, em 3D, o pequeno alienígena desanda em palavrões e críticas ao ser humano: “Detesto mulheres e homens que choram”. E a própria Samantha desabafa diante da impossibilidade da relação sexual ser real: “Meu Deus, não aguento mais”. Depois, ela tem ciúme de Theo por ele ter-se encontrado com a namorada (Olivia Wilde), numa demonstração de que os criadores do software dotaram-na de todas sensações e emoções humanas. Assim, ela termina por mostrar seus limites.

Como na maioria das fantasias que pretendem revelar as limitações tecnológicas, da robótica à biotecnologia, da internet e às viagens interplanetárias, o ser humano é sempre dotado da inventividade que escapa às suas criações. A inter-relação Samantha/Theo termina por mostrar as falhas de ambos. Dela ao claudicar, por lhe faltar os aplicativos, dele por vê-la como um programa tão perfeito que perde os traços virtuais. Mas sofre ao ouvi-la revelar o número de clientes por ela atendidos: 641. E por saber não ser o único com quem ela se relaciona, ele termina, mais uma vez, se frustrando.

Isabella é atarantada

Samantha é tão só uma ferramenta virtual para preencher espaços psíquicos e amenizar a solidão e a perda do cliente. A saída para Theo é buscar o outro, o ser humano. Então, ele e Amy deixam os espaços fechados, depressivos, e descortinam a paisagem urbana, passeando pela praia, desfrutando a companhia um do outro. Samantha, por outro lado, desaparece como tantas criações mercadológicas dos conglomerados das comunicações virtuais. Seu cancelamento assemelha-se à de um produto que, pela dubiedade da criação, termina por causar mais frustrações que demanda por novos programas.

Com “Ela”, Jonze se permite fugir ao realismo e mergulhar na fantasia sem fugir ao tema. É brilhante a tentativa de Samantha se tornar real através de Isabella (Portia Doubleday), para não perder Theo. Ao ficar diante dele, a garota fica atarantada, mais irreal do que qualquer imagem virtual de Samantha. Nem o espectador acredita que ela possa seduzir Theo. E tampouco ele consegue se relacionar com ela. Todo o plano se esboroa. O virtual pode se tornar uma caricatura ao tentar dublar o humano.

Ela” (“Her”). Drama/fantasia. EUA. 2013.119. minutos.Edição: Eric Zumbrunnen/Jeff Buchanan. Música: Arcade Fire. Fotografia: Hoyte Van Hoytema. Roteiro/direção: Spike Jonze. Elenco: Joaquin Phoenix, Emy Adams, Rooney Mara, Olivia Wilde, Scarlett Johansson, Laura Kai Chen, Portia Doubleday.

(*) Oscar 2013. Melhor Roteiro Original.

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