Transições negociadas, transgressões e golpismo no Brasil

Neste período simbolizado pelo inconfidente 21 de abril, publicamos a segunda parte do ensaio acerca dos 50 anos do golpe militar de 1964, seu significado histórico e suas repercussões atuais nos avanços indispensáveis ao Brasil.

A crônica do golpe anunciado

Meio século seria um tempo histórico menor ante bilhões de anos desde a origem da vida ou dos 514 anos de Brasil. Mas, longe de atenuar, sua dimensão destaca em atualidade a violenta interrupção de um rico e efervescente momento e as dramáticas repercussões ocasionadas pelo golpe militar de 1964. Este, além de ocasionar danos irreparáveis à democracia e ao processo da nossa formação, nada teve de casual; está, como vimos na primeira parte, enraizado na tradição colonial e republicana das elites brasileiras, desde o longo processo de articulação e permanência de sua identidade conservadora e golpista. Trata-se de um alerta atual.

E, quando se pensava esgotado o regime militar, a era neoliberal repicou seus efeitos na essência da subordinação ao imperialismo e ao grande capital, financeirizado e internacionalizado. Hoje, o país, ameaçado de retrocesso pela ofensiva fissionada de tais forças, vive plenamente o passivo legado pelo obscurantismo, com todas as graves e profundas sequelas sociais e políticas cumulativas das trevas. E o dilema: avançar com mobilização popular ou retroceder às cavernas e à escuridão.

Foi um episódio que se deu a partir de meticulosa preparação — inexistente no outro polo da luta de classes — e que legou uma relevante lição: não se pode pensar reformas de fundo estrutural no Brasil sem a superação da influência da doutrina Monroe, que, não reconhecida pelas nações hispânicas, se firmaria entre nós enquanto pilar central nada remoto da identidade subordinada.

Estabelecida mais a fundo na cooperação econômica e em especial na integração de guerra entre a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e o IV Corpo do Exército dos EUA, firmou-se na convivência doutrinária entre oficiais graduados de direita na Itália; em seguida consagrada na doutrina de segurança nacional, formulou-se na oposição às liberdades democráticas e às mudanças progressistas consideradas pelo polo imperialista e conservador favoráveis à “expansão comunista”.

A quem pertence o Brasil?

Uma trajetória que desmonta a ideia de que os EUA somente apoiaram o golpe; e reafirma que, pelo contrário, foram articuladores e protagonistas na primeira linha da conspiração. Na mesma orientação tradicional em que, de acordo com Moniz Bandeira, planejariam invadir e ocupar o Nordeste brasileiro — por sua posição geopolítica estratégica no contato com a África e outros objetivos de guerra — e o país, caso Getúlio Vargas pendesse para a neutralidade na II Grande Guerra.

Numa definição sucinta e sincera dessas doutrinas, com a Monroe os EUA demarcaram o veto à presença e expansão do colonialismo europeu no hemisfério; com a da “segurança nacional”, os oficiais da direita militar brasileira obraram, desde a Escola Superior de Guerra (ESG), num mal cheiroso e genuflexo convívio na Escola das Américas — que, de 1946 a 1984 situada no Panamá, graduou mais de 60 mil militares de cerca de 23 países da América Latina), o acordo pelo qual o Brasil deveria pertencer, com seu povo e território, ao quintal imperialista.

Na verdade, trataram de aderir plenamente à vedação das transformações estruturais que arrancariam os povos do atraso colonial, acolhendo a subordinação às regras extrativas do Império. Para isso, ao preço em dólares do sufocamento dos regimes democráticos no continente, estabeleceram o intervencionismo que, em golpes militares, consagrariam a hegemonia dos EUA sobre os povos latino-americanos.

Não foi à toa, portanto, que qualificá-los (aos ideólogos dessa simbiose) como “vendilhões da pátria” gerou implacáveis condenações na justiça militar, entre os hediondos e ofensivos crimes de opinião imputados aos opositores da ditadura.

Berço e fraldário da violência

Hoje, superar este entulho ideológico antagônico à emancipação nacional e social do Brasil e de seu povo, é uma tarefa de dimensão histórica que requer olhar estratégico, ousadia, determinação continuada, povo mobilizado, mídia democrática, o controle constitucional e progressista do aparato militar.

Sem tergiversar, posto que é impossível ignorar o elo entre a planejada desestabilização política que precedeu o golpe de 1964, no formidável derrame de dólares, na persistente orquestra da mídia corrompida e nas iniciativas remotas e atuais que, lá e cá, “a gente vê por aqui”.

Aquelas sombrias ameaças que, atualizadas em 2003, sucederam, além dos avanços sociais internos, a frustração da ALCA; o realinhamento geopolítico e econômico brasileiro pós BRICs; o apoio a Cuba com a construção do Porto de Mariel e de uma zona econômica especial no Caribe; a rejeição à compra dos caças da Boeing; as reações à ostensiva espionagem dos EUA contra a economia brasileira e a vida pessoal de sua Presidenta, agravadas pela recusa ao convite para uma visita oficial aos EUA.

Estes, entre inúmeros outros eventos imperdoáveis que a grosso modo espelhariam as iniciativas de João Goulart, numa linha externa identificada na posição que já golpeara seu antecessor, Jânio Quadros, de não alinhamento com os EUA e de aproximação com a China, União Soviética e de todas as posições internas protocoladas pelo Departamento de Estado como “esquerdistas”, desde as “reformas de base”.

Foi, entre as bandeiras mais salientes, a reforma agrária que encrespou a ofensiva conservadora, cega e reacionária ao reconhecer e admitir uma necessidade de alcance histórico e de profunda repercussão no respaldo ao desenvolvimento experimentado pelas principais potências mundiais. Mas que, entretanto, perfilava a raivosa oposição obscurantista da direita militar, a guarda pretoriana do latifúndio, aferrada às tradições dos senhores rurais e a um visceral anticomunismo.

Uma dedicada vocação entreguista e avessa a qualquer transformação progressista, devotada a assenhorear-se, em nome do alinhamento sem pátria e à margem da propalada dignidade cívica, das riquezas naturais e do patrimônio nacional brasileiro.

O elevado custo da rendição

O exame das implicações da não-resistência à ação golpista articulada ao Império, surge-nos então na forma do adiamento de um confronto inevitável para um povo insurreto ao rebaixamento ante as ditaduras e diante da ocupação estrangeira, como fartamente apresenta a exemplar coleção de derrotas amargada pelos invasores, entre os quais espanhóis e holandeses, no período colonial e nos heroicos episódios de patriótica extração libertária escoados no período republicano.

O gesto de João Goulart, de voar, no primeiro de abril, do Rio de Janeiro para Brasília e isolar-se no Rio Grande e em São Borja após o anúncio da quartelada, foi apresentado como ajuizado e positivo, pois desse modo evitaria uma guerra civil, em especial pela iminente ameaça da esquadra armada dos EUA na costa brasileira.

Na verdade, somente a “cereja do bolo” de um golpe anunciado, na sua arquitetura ideológica, desde as formulações do general Golbery do Couto e Silva na Escola Superior de Guerra (ESG), em meados dos anos ’50, não obstante a valorização historiográfica da conivência interna e da traição castrense que o precedeu.

Na vigência de um contexto de ilusões e vacilações contido pelo hiato da resistência estratégica, impôs-se o elevado custo do massacre de um lado — o da maioria social — com todo o trágico passivo ocasionado por dezenas de milhares de prisões, torturas, execuções, flagelo e suplício de um povo indefeso diante do peso armado sobre as liberdades, assentado sob a férrea e tumular cultura das tais práticas coloniais.

Foi a consagração do eclipse de um frustrado momento histórico que, longe de ser ameaçador, não replicava uma clássica revolução socialista, mas um cenário de ruptura com o arcaísmo colonial da estrutura de posse e uso da terra e de um desenvolvimento capitalista com ares de justiça social — à época ainda posto como “estado do bem estar” nos países centrais e como “populista” nos periféricos.

Em seu conjunto, um abrangente reformismo, abraçado pelas bandeiras de vigoroso apelo popular, apontava uma democrática modernização progressista na superestrutura e um salto brasileiro rumo à condição de grande potência mundial.

A serpente rompe a casca

Hoje, em radical contraponto no vácuo da Saúde e da Educação, os índices sociais de balanço da frustrada resistência se debruçam sobre a tragédia social de uma ímpar e ímpia onda de violência, potencializada, generalizada e atualizada na guerra civil “branca” dos maiores centros urbanos brasileiros — confirmada em milhares de homicídios, sobretudo de jovens.

No ovo da serpente estava uma incidência que hoje corresponde a muitas guerras: quase 1,3 milhão (276% em crescimento) de 1980 a 2011 . De forma exemplar, mesmo com os gastos de R$ 61 bilhões na segurança pública em 2012, cresceram 7,6% em relação a 2011, e o total de assassinatos foi o maior da série histórica desde 2008. Os homicídios (dolosos, com intenção de matar) cresceram continuamente: em 2009, 42 mil; em 2011, 43 mil; em 2012, 47.136 mil de um total de 50.108. Os Estados do Norte e Nordeste seguiram liderando o ranking homicida: Alagoas (61,8 casos por 100 mil habitantes); Pará (44); Ceará (42,5); Bahia (40,7) e Sergipe (40).

Em 2013, somente uma unidade federativa nordestina de população bem inferior, o Ceará, registrou quase tantos assassinatos (4.462) quanto o Rio de Janeiro (4.761) e superou São Paulo (4.439), o maior estado do país. O grau de generalização da violência pode ser aferido também pelo macabro espectro dos presídios, convertidos em campos de concentração, de pós-graduação ao crime ou de cruento extermínio — do Carandiru, em São Paulo, ao campo de Pedrinhas, no Maranhão.

Uma espantosa realidade que destaca o terror de uma nada gentil barbárie gestada ao longo de cinco séculos, sedimentada nos anos da ditadura e da era neoliberal, mas colhida no atual século e depositada na conta dos (recentes, desde 2003) governos mais avançados da nossa História. Eis o enigma que hoje nos posiciona na encruzilhada: romper o atraso com o povo organizado, consciente e mobilizado — e não é o acaso ou a supremacia de uma turba de provocadores que deve motivá-lo às ruas —, ou resignar-se ao retrocesso direitista, reacionário e conservador.

Pois não convém repetir o passado neste museu de grandes novidades da rotina de bombas semióticas que “a gente vê por aqui”.

A mídia contra Jango é a mídia de hoje

Em 1964, no figurino da velha mídia e historiadores chapa branca, tudo ocorreu do modo mais patético, como se Jango, resistindo ao golpe, se assumisse como mártir ou herói e com isso despencasse o zelo dedicado ao conceito do homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda. Uma ação que não lhe recairia bem no perfil de fazendeiro e de cauteloso herdeiro político de Getúlio Vargas; ou que, de outro modo, somente o faria reafirmar a decantada vocação “caudilhesca”, sem no entanto obscurecer a História, aprimorar a arte de tergiversar ou ocultar o que realmente deflagra a violência.

Mas o fator fundamental da sua queda forçada e sem nenhuma legitimidade não foi efetivamente o perfil de seu governo, que contava com expressivo apoio popular (quase 70% de aprovação na pesquisa não divulgada do Ibope , em posse da Unicamp desde 2003) no momento precedente ao golpe militar. Completava-se, na terceira tentativa, o ciclo golpista que rondou três governos “J” (Juscelino, Jânio e Jango).

Mas destaca-se ainda um outro fato, de iminente interesse democrático: na estratégia que instalou a ditadura militar-imperialista (militar e civil nos surge como um sofisma redundante e generalista) a mesma grande imprensa de hoje, com diferença restrita à folha corrida de CGCs na sonegação fiscal, teve substancial participação nas articulações do golpe, desde o protagonismo dos maiores jornais da época: Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil — até 2010 um jornal impresso e de linha editorial conservadora — nas manchetes que alternam somente o fato a ser manipulado ou deformado em sua devida conjuntura e tempo histórico.

É também notável que se saiba — a favor de uma linha da tese segundo a qual a ditadura militar serviu à concentração e à acumulação do capital: a fortuna reunida dos três herdeiros de Roberto Marinho, ex-proprietário do mais poderoso conglomerado de comunicações do hemisfério, disputa o primeiro lugar entre os arquibilionários do Brasil . Foi o grupo que levou a maior parte do butim da ditadura no setor, unindo-se no apoio ao golpe à nata dos banqueiros e grandes capitalistas.

Um fato que se insere entre aqueles que o contemporâneo noviciado udenista e do apostolado dos hipócritas “inimigos” da corrupção e da realização da Copa do Mundo no Brasil, finge ignorar.

As consequências da intrusão militar hoje são enfim conhecidas. E vão muito além de uma conta intervencionista regiamente remunerada, posto que no momento do golpe a inflação oscilaria na casa dos 80% e, no amargo crepúsculo da ditadura, agonizava em 300% — e numa dívida de US$ 1,5 trilhão. E sem calote ao imperialismo ou ao processo do enriquecimento privado; somente ao país e ao povo brasileiro.

(No próximo texto, reposicionamos a estratégia golpista que alimenta a longa conspiração amadurecida nos convescotes entre os generais da ESG e os interlocutores do Departamento de Estado dos EUA, sua reciclagem civil subordinada ao Consenso de Washington nos anos neoliberais e o novo cenário ambientado para o retrocesso conservador no Brasil contemporâneo).

*Dados extraídos do Datasus – Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, do Ministério da Saúde, pelo Instituto Avante.

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/464707-JANGO-TINHA-70-DE-APROVACAO-AS-VESPERAS-DO-GOLPE-DE-64,-APONTA-PESQUISA.html

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Os-bilionarios-da-Globo/12/29978

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