“Eles Voltam” Duras mutações

Em filme sobre rito de passagem de pré-adolescente nordestina, cineasta brasiliense Marcelo Lordello trata do Brasil em franca mutação social

Há muito de surreal na primeira parte deste “Eles Voltam”. A pré-adolescente, Christiane (Maria Luíza Tavares), de 12 anos, fica presa ao imaginário espaço entre o banco de concreto e a rodovia movimentada à espera dos pais. Em planos fechados o cineasta brasiliense, radicado no Recife, Marcello Lordello compõe um enigma, que ela e o espectador tentam desvendar. O barulho incessante de veículos reflete a um só tempo seu estado psicológico, a agitação de um país em mutação e sua interminável espera.

Nesta tríplice construção dramática, Lordello desconstrói a paisagem nordestina, a que o espectador se acostumou. Não se trata mais do agreste, das duras imagens do país agrário de ”Vidas Secas” (1963), ou de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”(1964), mas do Brasil urbano, com traços rurais. É nele que a garota Chris irá transitar, sem que Lordello dê qualquer pista. Restam só ela, a paisagem e a rodovia. E este mistério termina por lhe apontar caminhos.

Lordello a faz percorrer espaços que a levam às comunidades do interior. Desta forma, ela substitui seu mundo pequeno burguês pelo universo proletário, limpando mansões de praia com a faxineira afrodescendente Fátima (Maricéia Conceição) e as duas filhas desta. As cenas em que ela varre e arruma quartos e salas mostram o tênue limite entre seu segmento de classe e o das faxineiras, nas difíceis formas de ganhar o sustento.

Chris muda de classe social

A triplicidade de ação permanece, agora com demarcações bem claras: o mistério, o baixo-proletariado e a mutação de Chris. Lordello, que talvez não tivesse essa intenção, vai compondo a estrutura social pernambucana, traçando seus meandros e contradições. O espectador então passa a ligar as partes, vendo como se compõe a estrutura de classe do país e o papel de cada segmento social. Surge então a falsa estratificação de classe burguesa, em A, B, C, D e, sem forçar, E.

Mais do que divisão político-econômico-social, com função mercadológica (ascensão através do consumo), trata-se de classificação estigmatizante, pois cada segmento social, ao pensar em ascensão, exclui o outro, vendo-se como integrante da camada dirigente, sem deter poder de classe, dado que este pertence, no capitalismo, à burguesia. Chris, ao estar com a vassoura na mão, não se conscientiza disso, apenas sente o peso da tarefa.

As camadas do filme assim se desdobram, indo do social ao despertar de sua feminidade. Suas descobertas do corpo emergem na íntima conversa com Pri (Irma Brown), amiga da família, seu furtivo despertar do desejo, seu desabrochar como mulher no banho de mar com Pri e Jennifer (Jéssica Gomes), filha de Fátima. Ela percebe a existência de um universo para além do seu “eu”, de segurança familiar, menina ainda, entregue a desencontros cujas razões ignora e aos quais não reage, por lhes parecer normais.

Filme é dividido em segmentos

Lordello encontra uma forma de unir os “nove segmentos” em que dividiu o filme, sem transformá-los em capítulos, a exemplo do cinema mudo. Cada personagem os faz avançar de um para o outro. As sequências finais são apenas expositivas (sem conflitos e oposições), indicando mais passagens para o desfecho. Igual ao passeio de Chris e a amiga de escola pelo centro do Recife que, não fosse pelo bolero, reminiscências do velho Recife, seria descartável. Porém, Lordello logo se recupera com o enigmático desfecho.

“Eles Voltam” é também uma viagem pelas entranhas da nova burguesia brasileira, vista sob a ótica pernambucana. Ela se acotovela nos apertados espaços urbanos com vistas para o oceano. Chris e a amiga de escola, em seu passeio, ficam na cobertura do prédio, tentando vê-lo e dele só avistam nesgas. Depreende-se que os novos ricos adquirem fantasias, imagens, do que não desfrutarão. Não convivem com os ciclos da natureza, mas com a insegurança e o medo do outro, cuja adversidade sua ganância criou.

Chris é fruto dessas miragens burguesas. O fato de Lordello tê-la feito conviver com o baixo-proletariado e a ele se integrar por breve período não a mudou. Lordello não lhe opôs contrapontos reais, que a fizessem enfrentar conscientemente a dureza da realidade. Nem sua idade lhe permitiu ver que a faxineira e suas filhas são parte do que sua classe exclui. Ela apenas passou por elas e voltou à sua normalidade burguesa e ao mundo pré-adolescente.

Theo Angelopoulos (1936/2012), ao tratar de tema semelhante, mostra que as mutações deixam marcas profundas. A pré-adolescente Voula (Tania Palaiogou) e seu irmão Alexandre (Michalis Zeke) as sentem no corpo ao tentar localizar o pai. Daí surge seu duro aprendizado da natureza humana e das perdas que a vida lhes impõe. Lordello transforma as estripulias de Chris e seu irmão João (Georgio Kokkosi) numa tragédia familiar, que se torna um absurdo às avessas. Não é mera inferência.

“Eles Voltam”. Drama. Brasil. 2012. 95 minutos. Som: Guga S. Rocha. Montagem: Eduardo Serrano. Trilha sonora: Caçapa. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Roteiro/direção: Marcelo Lordello. Elenco: Maria Luíza Tavares, Georgio Kokkosi, Irma Brown, Maricéia Conceição, Elayne de Moura.

(*) Festival de Brasília 2012: Melhor filme, Melhor atriz (Maria Luíza Tavares), Melhor atriz-coadjuvante (Elayne de Moura).

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