“Instinto Materno” Poder corrompido

A partir de um acidente, cineasta romeno Cálin Peter Netzer discute a persistência do matriarcado e as relações de classe em seu país

É com simplicidade que o cineasta romeno Cálin Peter Netzer abre este “Instinto Materno”. Mantém a câmera fixa em Cornélia Keneres (Luminita Gheorghiu), de 60 anos, enquanto ela desfia à amiga Guta (Natasa Raab) sua conflitante relação com o filho Barbu (Bogdan Domitrache) e a nora Carmen (Ilinca Goia). Pode-se intuir que este seja o leitmotiv do filme, por Netzer discutir a persistência do matriarcado, a partir do modo como ela tenta controlar o filho de 30 anos e dominar o companheiro-cirurgião Relu (Florin Zamfirescu). .

Mas este é apenas o recurso usado por Netzer e seu corroteirista Rázuan Rádulescu para ir abrindo o leque deste surpreendente “Instinto Materno”, Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2013. Numa espécie de preâmbulo, ele mostra a vida burguesa levada por Cornélia, entre referências aos escritores Herta Müller e Orhan Pamuk, jantar em sua casa com altas figuras do governo, dança com Telu, e assistindo a um recital lírico. Portanto uma mulher ativa e influente em seu meio.

Mas, abruptamente, Netzer faz irromper na narrativa o fato que abre o leque para mostrar como burguesia e a alta classe média romena, emergida no pós-Socialismo (1947/1989), usam o poder. Ele não faz referência à Romênia de Nicolae Ceausescu (1918/1989), nem inclui bandeiras vermelhas, fotografias ou citações daquele período. Centra-se na maneira como Cornélia tenta livrar Barbu da cadeia, depois de ele atropelar o garoto Mihai Agheliu, de 11 anos, numa cidade do interior à noite.

Cornélia se impõe às autoridades

O método usado por ela é típico da burguesia, inclusive no Brasil: tráfico de influência, ameaças às autoridades, adulteração do boletim de ocorrência. Inescrupulosa, ela critica o comissário adjunto: “Você ainda não registrou (o depoimento do filho) no escritório do procurador. Estou bem informada”. Ao que ele responde: “Sim, você é bem informada, e muito bem conectada”. E ela ainda insulta a assistente: “Você não se colocou no lugar de meu filho”, que lhe devolve: ”Você se colocou no lugar daquela criança?”.

A partir desta intromissão no inquérito policial, ela e Relu traçam um maquiavélico plano para evitar a condenação do filho. E o tráfico de influência se alastra. Eles ignoram o interesse coletivo, não respeitam a igualdade de direitos, fazendo seu interesse como camada dirigente se confundir com o Estado. Há só uma classe, a burguesa, a controlar toda estrutura de poder. Netzer põe sua câmera para confirmar o que é já sabido, talvez menos em seu país, ainda vivendo as fantasias iniciais do sistema capitalista.

No entanto, se na primeira parte a narrativa é focada nas relações conflituosas da mãe com o filho e a nora, Netzer aos poucos introduz subtramas importantes para a compreensão dos personagens. Eles são cerebrais e extravasam seus rancores sem explosões emocionais. Barbu tenta firmar sua independência e ter liberdade para viver com Carmen. Cornélia se opõe sem considerar as razões dele. Porém, ela e Carmen se odeiam, mas, num instante de mútua vulnerabilidade, sentem o quanto precisam uma da outra.

Filme é uma fábula

A estas dualidades, Netzer acrescenta o inesperado encontro de Cornélia com o “enxadrista” Laurentiu. Ele se revela à altura dela na arte de manobrar o outro. É a sequência mais cerebral do filme. Ele muda as peças com precisão, pressionando-a para escorregar. Tratam do acidente como se fosse um negócio em que altas somas estão em jogo. O filme ganha, a partir daí, outro enfoque, mais racional, embora a longa sequência na casa da família Agheliu seja dominada pela emoção sem resvalar para a autopiedade.

É uma sequência em que o cinema revela sua capacidade de levar o espectador à reflexão. O que era para ser mais uma tramóia de Cornélia transforma-se no despertar para a dor do outro, para a prevalência do humano e a inutilidade do dinheiro. O que conta aqui é fator humano, não as diferenças sociais, ditadas pelo capital. Ela se defronta com os Agheliu, pais do garoto Mihal, em condição de subalternidade. E, contraditoriamente, o que os igualam é a dor. A questão teológica levantada por Netzer então perde o sentido.

O que levou Cornélia a tal impasse foi a certeza de impunidade do filho, reforçada por sua posição de classe e o conflito freudiano dele. A reação de um dos moradores da cidadezinha bem o explica: “Um estúpido de Bucareste mata alguém na estrada. Eles não se preocupam com gente como nós”. Entretanto, o conflito interior de Barbu enseja outros significados. Ele consegue se libertar da mãe e da culpa pela morte de Mihal com um simples ato: “Mãe, destrave o trinco (do carro)”. Assim, ganha coragem para ficar diante de Agheli, pai. É sua redenção.

Enfim, “Instinto Materno” é uma fábula em que predominam o silêncio, os olhares, as elipses e as sutilezas que enriquecem os personagens e a narrativa. Trata da dor, da perda e da morte, sem excessos ou melodrama. E a câmera de Netzer só registra, sem conduzir o espectador. É o bastante.

“Instinto Materno”. (“Pozitia Copilului”)
. Drama. Romênia. 2013. 112 minutos. Montagem: Dana Lucretia Bunescou. Fotografia: Andrei Buticá. Roteiro: Rázuan Rádulescu/Cálin Peter Netzer. Direção: Cálin Peter Netzer. Elenco: Luminita Gheorghiu, Bogdan Dumitrache, Natasa Raab, Ilinca Goia, Florin Zamfirescu.

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