“Ninfomaníaca – Volume II” Sem prazer

Cineasta dinamarquês Lars Von Trier trata das motivações e dos limites do desejo e da incapacidade das terapias em cuidar de suas variantes

A considerar a tese do cineasta Lars Von Trier nos volumes I e II de “Ninfomaníaca”, o Ocidente vive uma crise ética e moral. O conflito entre repressão e liberação bloqueia o desejo, gerando impotência, frigidez, morbidez e violência. E reflete as pressões das forças conservadoras sobre os movimentos de liberação político-sociais que avançam desde os 60. Trier configura-os nas conversas da deserdada Joe (Charlotte Gainsbourg) com o erudito Seligman (Stellan Skarsgaard), mostrando os limites de ambos.

Seligman encontra na cisão da Igreja Católica em 1054; quando surgiram a Igreja Cristã Oriental, Ortodoxa, e a Igreja Cristã Ocidental, o contexto para a doença de Joe. A primeira seria voltada para a paz, a alegria, a felicidade, enquanto a outra para a punição, o sacrifício, a dor. No entanto, a Ocidental, mesmo em crise, ainda predomina. Seus dogmas e ações impõem regras sobre aborto, casamento entre heteros ou entre homos, punições (pecado), imolação (dor cruel) e temor à punição pós-morte.

Esta introjeção controla corações e mentes. Seu oposto é a liberação, o comportamento ditado pelas ações racionais e coletivas do ser humano, criando espaço para que possa exercer suas potencialidades. Daí a luta constante entre as forças repressoras, criadoras de neuroses, psicoses e frustrações e os movimentos de liberação sexual, social e político-ideológico. Joe é produto da liberação sexual, em que pese sua ninfomania, a ausência de desejo e a troca constante de parceiros em relações sadomasoquistas.

Joe torna-se agente ativa

A ninfomania, segundo o psicólogo Gabriel Fraga, advém de problemas neurofisiológicos, privação sexual na infância, busca de compensação emocional, resistência às tendências homossexuais, inveja do pênis, desejo de vingar-se do pai, medo de frigidez e necessidade de ser amada e aceita (1). Há nas relações sexuais de Joe o que Freud chama de “sensações de desprazer no começo da temida situação de perigo”(2). Isso corre quando é seduzida pela ninfeta P (Mia Goth), e resiste no início, ou é tratada por K (Jamie Bell), que usa de chicotadas como método terapêutico.

Ao abordar suas variantes sexuais, Trier coloca-a em situações que a levam da maternidade à mutilação, da dor à punição, em sequências kafkanianas. Principalmente o uso da violência de K para obter prazer. Há um ritual, semelhante à imolação, que gera medo e lacerações em seu corpo. A partir daí, ela inverte os papéis, tornando-se agente ativa ao virar cobradora de dívidas, submetendo os endinheirados devedores a cruéis punições, inclusive provocando neles excitações submersas.

É nesta sequência que ela rompe os padrões éticos e morais de Seligman, ao lhe dizer que praticou felação num devedor e ele se revelou pedófilo. Foge aos ditos preceitos religiosos. O prazer é um ato estimulado pelo desejo, não por preceitos e dogmas. Seligman que havia feito uma leitura teológica cristã oriental da Virgem Maria e do Menino Jesus entra em contradição. E revela-se o vértice dela, ao dizer-se frígido. O desfecho o mostrará como um falso moralista, o que lhe é fatal, pois se deixa excitar pelas revelações sexuais dela.

Joe perdeu os parâmetros

Não bastasse isto, Trier estende a desmistificação de Seligman à psicoterapia. Joe contesta o método de a psicoterapeuta tratar seus pacientes, por não citá-la como ninfomaníaca. Ela diz que mudar os termos não elimina o que ela sente, prefere ser chamada de ninfomaníaca. São inversões que desmontam as certezas de Seligman, cujo pensamento está estruturado em dualidades cerebrais, não unindo teoria e prática. Suas idéias são banais perto da experiência dela.

Suas explicações para os fenômenos por ela experimentados beiram o risível, são simplistas demais para dar conta de comportamento tão complexo. No entanto é a maneira de Trier tornar seu filme acessível ao espectador, longe de suas herméticas obras: “O Anticristo” (2009) e “Melancolia” (2011). “Ninfomaníaca I e II tem, em si, uma carga desafiadora ao abordar o sexo em toda sua veracidade, desafiando os padrões éticos e morais burguês-religiosos, ainda imperantes.

Trier segue, assim, a trilha aberta por Ingmar Bergman (1918/2007), em “Gritos e Sussurros” (1972), na cena em que a enferma (Ingrid Thulin) se castra; seguido por Pier Paolo Pasolini (1922/1975), na adaptação de “As Mil e Uma Noites” (1974), com nus frontais e sexo; e Nagisa Oshima (1932/2013), nas sequências de sexo explícito e castração masculina em “O Império dos Sentidos” (1976). Escapam ao que o roteirista francês Jean-Claude Carrière chama de falsidade das relações sexuais no cinema e apontam caminhos.

Ninfomaníaca – Volume II. “Nymphomaniac – Volume II”. Drama. Dinamarca/Alemanha/França. 124 minutos. Edição: Molly Marlene Stensgaard. Fotografia: Manuel Alberto Claro. Roteiro/direção: Lars Von Trier. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgaard, Shia Labeouf, Mia Goth, Willem Dafoe, Stacey Martin.
(1) Ninfomania, citação, VidaBrasil, Edição n° 299, 31/10/2014.

(2) Freud, Sigmund, Angústia e Instintos, O Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise e Outros Textos, 1930-1936, pág. 235, Obras Completas Volume 18, Tradução: Paulo César de Souza, Companhia das Letras. 2010.

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