Marcelo Buzetto: um preso político brasileiro

A perseguição política a um militante do movimento social retrata, na verdade, um problema de fundo: a forma como a direita encara a disputa ideológica. Daí a necessidade de todos os democratas brasileiros se somar à luta pela libertação de Marcelo Buz

No dia 28 de maio de 1999, vinte trabalhadores foram presos durante uma operação da Polícia Militar — sob a acusação de saque a três caminhões na Rodovia Castelo Branco, em Porto Feliz, a 120 quilômetros da cidade de São Paulo. Quatrocentos policiais, incluindo integrantes do pelotão de choque, da cavalaria e canil, com o apoio de helicópteros, ocuparam e revistaram o acampamento ''Nova Canudos'', do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), instalado à margem do km 100 da Rodovia. A ordem de busca e apreensão dos alimentos saqueados — carne bovina, macarrão e batata — foi dada pela juíza Daniela Bortolieri Ventrice, de Porto Feliz. A mesma juíza havia decretado o despejo dos sem-terra quando eles entraram na Fazenda Engenho D’água, três meses antes, e mandara prender o então coordenador estadual do MST, Gilmar Mauro, acusado de furto.


 


Na delegacia, o motorista que transportava a carne, Fábio Eduardo Duarte, “reconheceu” o professor universitário Marcelo Buzetto como integrante do grupo e disse que ele o ameaçou com facões. Marcelo Buzetto é do setor de relações internacionais do MST e integrante do Comitê de Solidariedade aos Povos Árabes. É também professor universitário, formado em História pela Universidade de São Paulo (USP). Ele foi condenado a seis anos e quatro meses de reclusão em regime inicial semi-aberto, e, enquanto não havia vaga, começou a cumprir a pena no regime domiciliar. No dia 19 de janeiro, Marcelo Buzeto foi preso quando compareceu ao fórum, como fazia todos os meses, para cumprir uma determinação da sentença.



Critérios para a fixação da pena



A prisão tem caráter meramente político. Segundo os advogados que cuidam do caso, o juiz de primeira instância não analisou todas as circunstâncias judiciais do crime, violando os critérios para a fixação da pena (artigo 59 do Código Penal), bem como os princípios do julgamento público e da fundamentação das decisões (artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal). Assim, de acordo com a defesa, estaria caracterizado o constrangimento ilegal do preso. Por isso, os advogados recorreram ao Superior Tribunal Federal (STF). O relator do recurso, o ministro Joaquim Barbosa, declarou que “é pacífico o entendimento da Corte de que o habeas corpus não se presta a revolver o conjunto probatório colhido na instrução processual da ação penal”.


 


Além disso, Barbosa afirmou que a jurisprudência do STF é no sentido de que “a interposição de agravo de instrumento contra negativa de seguimento de recurso especial não é óbice à execução da sentença condenatória, em face da ausência de efeito suspensivo em tal espécie recursal”. Ao decidir pelo indeferimento da liminar, Joaquim Barbosa informou que não consta dos autos comprovação de que até o presente momento a sentença condenatória não tenha transitado em julgado. Desse modo, segundo ele, “não há como se aferir a ocorrência de ato de constrangimento ilegal supostamente praticado contra o paciente”. As demais questões suscitadas no pedido serão analisadas por ocasião do julgamento colegiado, por demandarem total conhecimento do caso e por se confundirem com o mérito do habeas corpus, concluiu o relator.



Intolerância tem um motivo bem definido



O episódio é mais uma contribuição de um minúsculo setor da sociedade, do qual a “grande imprensa” é a parte mais significativa, à ciência do direito penal — o autor sem crime. Funciona assim: alguém diz que o sujeito foi pego com a mão na massa, cometendo um delito. Não dá nenhuma explicação para o ato concreto. Ou melhor: dá sete explicações diferentes, o que na prática significa nenhuma. Mas tudo isso é transformado em uma overdose de “indignação”. Quando o movimento social está envolvido, o caso é levado à disputa política e o verdadeiro culpado por tudo, que antes era a oposição, depois da posse de Lula na Presidência da República passou a ser o governo federal. Aí se exige a apuração imediata das responsabilidades que o presidente da República ou o ministro disso ou daquilo tiveram no caso.


 


Nos dias seguintes, a discussão passa a ser, cada vez mais, o que o governo teria ou não teria feito de errado. Não se descobre nada contra o governo, é claro, pois não há nada a descobrir, mas deixa-se de lado a questão central. Some o crime. Fica o autor. O MST é uma vítima antiga dessa prática da direita. A razão principal é que o movimento representa um forte obstáculo ideológico aos conservadores. Organizações como o MST e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) são, por definição, progressistas. Seus apoios a um governo representam uma ampliação democrática inaceitável para a direita. Por isso ela usa todos os meios para amplificar sua força ideológica e assim catalisar ondas difusas de protestos contra a esquerda.


 


Essa intolerância tem um motivo bem definido — o MST conseguiu firmar a reforma agrária entre as prioridades nacionais e colocar-se como símbolo e principal veículo dessa luta. Conseguiu mostrar que o objetivo da reforma agrária não deve ser necessariamente o de aumentar a produção agrícola, mas sim o de criar meios de sobrevivência para os milhares de brasileiros que buscam o seu sustento no campo. Ou seja: conseguiu fazer uma grande parcela da população perceber que a questão fundiária é uma das principais faces de nossa tragédia social. O cerne do problema é, por conseguinte, canalizar de maneira construtiva a ampla compreensão que hoje existe a respeito da necessidade da reforma agrária. O grande trunfo do MST, que o torna intragável à direita, é a crescente aceitação dessa tese.



Certas “excelências” não são excelentes



O problema é que a reforma agrária possível — a menos que estejamos imaginando uma completa revolução social — nunca estará livre da prosaica materialidade dos atos de governo (desapropriação, indenização, financiamento, assistência técnica e creditícia, e em parte até assistência social, até que os assentados tenham meios próprios de sobrevivência). O MST tornou-se relevante por causa da função que assumiu ao desempenhar esse papel num momento muito especial da história brasileira. Uma de suas funções é dizer, em voz alta e clara, que os trabalhadores sem terra não estão mais dispostos a fingir que respeitam gente que não respeitam. Não acham que algumas de ''suas excelências'' são excelentes só porque ostentam latifúndios em seus patrimônios.


 


Numa palavra, o MST incomoda — e é muito bom que haja alguém disposto a incomodar, num país em que alguns gatos pingados se sentem cada vez mais à vontade para tratar com aberto desprezo qualquer cobrança de providências a respeito da calamidade social ou para dizer qualquer barbaridade que lhe passe pela cabeça. Podem ser os números bonitos que o agronegócio tem dado à balança comercial brasileira. Pode ser a tese de certos “comentaristas” de que não existe problema algum que não possa ser varrido para baixo do tapete com um bom discurso. Pode ser, enfim, a velha aposta numa suposta ignorância de um eleitorado que não entende o que são superávits primário e comercial, balanço de pagamento ou taxa Selic.


 


O encontro do Brasil com a realidade



 


Não há como negar a importância dos movimentos sociais para a incontestável decomposição da “grande imprensa” em praça pública. Ela não é mais sagrada. Vai chegando ao fim um mandamento não escrito pelo qual era pecado dizer qualquer coisa negativa a respeito dela. Como durante o regime militar, quando o cidadão que estava em desacordo com o governo era chamado de subversivo, a serviço do movimento comunista internacional, quem critica alguma “verdade” ditada por algum veiculo de comunicação da mídia monopolista é um agente da baderna a serviço do “populismo” que se espalha pela América Latina. Na melhor das hipóteses, essa gente age assim por preconceito. Na pior, por ser inimiga do povo brasileiro. Não mais. A onda de descrédito na qual a “grande imprensa” está se afogando levou embora o manto de santidade que protegia a sua imagem — e agora ela pode, enfim, ser descrita como realmente é. É um avanço, sem dúvida, quando se leva em conta o tratamento-padrão que recebia até bem pouco tempo atrás.


 


O que importa é o encontro do Brasil com a realidade — como ficou demonstrado nas recentes eleições presidenciais. Isso permite dizer que a “grande imprensa” não é Nosso Senhor Jesus Cristo, nem as cúpulas do PSDB e do PFL são os doze apóstolos. Nunca foram, é claro. Mas agora, em meio ao desastre de suas “denúncias”, a política ideológica da direita perdeu a força para sustentar que eram. É um alívio. Como as realidades, em geral, não podem permanecer ocultas pelo resto da vida, a “grande imprensa” da mitologia acabou dando lugar à “grande imprensa” de verdade. Foi saindo de cena, de ''equívoco'' em ''equívoco'', a noção de uma “imprensa” pura, virtuosa e justa. E o MST é um dos principais responsáveis por isso. Um dos seus méritos é o de fazer muita gente não aceitar o papel de bobo que a direita e sua imprensa querem reservar à imensa maioria dos brasileiros. A condenação e a prisão de Marcelo Buzetto inserem-se aí. Daí a importância de uma mobilização ampla e unitária pela sua libertação.


 


 

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