O impacto político do PAC

Os decibéis da gritaria dos neoliberais que saíram às ruas para distribuir pedradas nas medidas econômicas anunciadas pelo governo são um bom termômetro para medir como será a temperatura do debate político no segundo mandato do presidente Luis Inácio Lul

Em janeiro de 2007, o empresário Jorge Gerdau Johannpeter cedeu a presidência da Gerdau, um dos 15 maiores grupos siderúrgicos do mundo, ao filho André. O acontecimento não mereceria comentários se não fosse um debate que ganha espaço no Brasil: a suposta ameaça à “democracia” representada pelos governos progressistas da América Latina. André participou de um grupo de cerca de 40 jovens — sócios ou herdeiros de algumas das maiores empresas do Rio Grande do Sul — que todas as noites de segunda-feira reúne-se no restaurante do Ritter Hotel, no centro de Porto Alegre. Lá, dispostos em mesas que formam um semicírculo, homens engravatados e mulheres vestidas elegantemente passam cerca de 3 horas sendo doutrinados sob os princípios do liberalismo.


 


São os sócios do Instituto de Estudos Empresariais, mais conhecido como IEE. Eles formam uma espécie de brigada fundamentalista, cuja missão é assimilar e disseminar as crenças na “economia de mercado”, na supremacia do privado sobre o público, no chamado “Estado mínimo”. Defendem que o Estado deve se ater exclusivamente ao provimento de “segurança e justiça aos cidadãos”, pregam o fim do Banco Central e a “livre escolha” da moeda corrente. O alvo principal é a legislação social e trabalhista. ''Nossa causa é formar líderes virtuosos que conduzirão empresas e governos melhores'', diz Leandro Gostisa, 27 anos, sócio e gestor de negócios da Methode Ikro South America, fabricante de componentes automotivos, e vice-presidente do IEE.


 


Inimigo número um


 


Nos últimos 20 anos, mais de 300 empresários já passaram pelas fileiras do Instituto. Entre os patrocinadores de seus eventos estão algumas das maiores empresas brasileiras, como o grupo Ipiranga, do setor de petróleo e petroquímico, a Vonpar, engarrafadora da Coca-Cola na Região Sul, a Lojas Renner e a Springer Carrier. Os líderes do IEE esperam que seus discípulos defendam — permanentemente — a causa em entidades empresariais, sindicatos e, principalmente, no governo. ''Há muitas lideranças do IEE infiltradas nas entidades, buscando espaço para as idéias liberais'', diz o empresário Paulo Afonso Feijó, sócio e presidente da Mercador.com, empresa do grupo Telefônica especializada em serviços para o setor de varejo.


 


A formação dos quadros da entidade dura, no máximo, cinco anos. Durante esse período, o sócio tem de participar das reuniões semanais e seguir uma bibliografia recomendada — toda ela formada, obviamente, por libelos do liberalismo. Entre os títulos estão O Que É Liberalismo, do empresário brasileiro Donald Stewart Jr., e O Caminho da Servidão, do economista austríaco Friedrich von Hayek — considerado a gênese do neoliberalismo. É preciso estudar todos os temas discutidos, debater com convidados, participar dos eventos e coordenar grupos de estudo. Hoje, o grande desafio dos militantes do IEE é espalhar a causa para além dos limites do Rio Grande do Sul. Para eles, é preciso guardar as fronteiras da propriedade privada contra o contágio infernal das organizações dirigidas pelo Estado-Diabo, o inimigo número um do mercado-Deus. 


 


Uma comparação feliz


 


Não se sabe até que ponto Lula levou essas idéias em consideração durante seu discurso no lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Pouco me interessaria um aumento expressivo do PIB se isso implicasse, o mínimo que fosse, redução das liberdades democráticas”, disse Lula. (Sabemos que no Brasil os golpes da elite sempre advogaram a defesa da “iniciativa privada”, da “liberdade” e dos “bons costumes”.) Mas a sempre oportunista “grande imprensa” se aproveitou das palavras do presidente para amplificar as vozes fundamentalistas que pregam contra as democracias que não rezam pela cartilha neoliberal — sobretudo as da Venezuela e da China. “Não acredito que a fala do presidente seja uma fala que diz respeito a outras nações. Mas acho que é uma reflexão sobre os rumos do Brasil'', disse a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.


 


A questão é que existem dois pontos de vista sobre o PAC. O primeiro: é lamentável que o Brasil ainda esteja falando em defesa da democracia. Isso quer dizer que realmente os democratas precisam estar alertas contra as ameaças de retrocesso representadas pelo neoliberalismo — símbolo máximo de um ciclo autoritário, iniciado com o golpe militar de 1964, quando o país vivia sob pacotes da chamada ''cavalaria'' (FMI, Tesouro norte-americano, grandes bancos e outras instituições internacionais). O segundo: o PAC representa a primeira tentativa séria do governo Lula de atacar um velho problema nacional, que é a ausência do Estado da vida econômica do país. Foi preciso muito sofrimento para que essa questão óbvia, descrita em qualquer manual de economia progressista, entrasse na ordem do dia.


 


No pronunciamento, Lula fez uma comparação feliz. ''Aqui não se fortalece a economia enfraquecendo o social, aqui não se cria ilusões de distribuir o que não se tem, nem de gastar o que não se pode pagar”, disse ele. É uma pena que o governo, em sua maioria — possivelmente por conta do peso descomunal do ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci —, tenha demorado quatro anos para perceber essa verdade inescapável. Seja como for, é preciso deixar claro: essa resposta do governo será uma das condições para o país sair do atoleiro neoliberal.  Dito isso, fica a questão: o conjunto de medidas proposto basta? A resposta certamente é não. Mas esse é o caminho que o Brasil precisa para diminuir sua vulnerabilidade social? A resposta parece ser sim, desde que as premissas do PAC saiam do plano das intenções para o mundo das coisas reais.


 


Um lugar único na história.


 


É claro que a batalha não terminou. Aliás, ela apenas acaba de começar. Anunciar é uma coisa, implementar é outra bem diferente. A próxima batalha será no Congresso. Lá, o governo terá de jogar toda a sua força para garantir a aprovação das medidas. Se realmente virarem realidade, elas serão a segurança de um segundo governo Lula ainda melhor do que o primeiro. Mais do que um novo mandato, o que a votação maciça nas urnas conferiu ao presidente foi uma segunda chance de realizar nos próximos quatro anos uma tarefa imperativa que apenas começou em seu primeiro período à frente do governo brasileiro. O nome dessa tarefa: combate à desigualdade social. Não há como negar os extraordinários avanços conduzidos pelo presidente para retirar o Brasil da condição de um gigante paralisado pela farra financeira.


 


O melhor exemplo de que o país acordou para essa verdade inescapável talvez seja o comportamento de Lula às vésperas da reeleição. Até recentemente seria impensável um candidato a presidente denunciar com êxito as mazelas das privatizações perto de uma eleição — ou até longe. O que Lula prometeu aos brasileiros, na reta final de sua campanha, foram medidas duras para tempos duros. Ter sido reeleito é outra demonstração de que o Brasil realmente mudou um bocado nos últimos anos. O conjunto de medidas prometido pelo presidente para enfrentar, finalmente, o problema da paralisia econômica do país é a prova de que ele não está mais disposto a tolerar quem gosta de brincar em serviço, como fazia Palocci. Por tudo isso, o Brasil deixou de ser uma piada. Se conseguir, agora, enfrentar o principal problema herdado da “era FHC” — o descaso com o crescimento da economia — Lula com certeza merecerá um lugar único na história.


 


 

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