Conflito entre os deserdados

Em 1818 o naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius visitou o estado do Amazonas e, impactado com a selvageria e as guerras de extermínio imposta aos índios pelos colonizadores, fez um questionamento bastante incômodo: “Que meios estão ainda hoje à disposição do Estado, para melhorar a sorte dos desgraçados filhos de uma terra que, até aqui, em vez de benefícios só recebeu da Europa cristã, guerra e devastação?”

Quase 200 anos depois esse mesmo questionamento pode ser repetido ao estado brasileiro, nas 3 esferas de decisão, acerca do “conflito dos deserdados” que atualmente ocorre no sul do Amazonas envolvendo índios tenharins e posseiros aliciados nos mais diversos estados do país para ocupar o “o vazio demográfico” da Amazônia.

Martius relata que quando os índios se opunham, pela astúcia ou pela força, a escravização que o europeu queria lhe impor, isso era motivo para terríveis carnificinas ou simplesmente guerra de extermínio. Um relatório do Padre Antônio Vieira informa ao rei que os portugueses destruíram 400 tabas indígenas apenas nos primeiros 40 anos de colonização da província do Grão-Pará.

Tornar os índios úteis e lucrativos, com a menor despesa possível, era o objetivo geral dos colonizadores, razão pela qual é fácil compreender que os descimentos a fim de obter índios para o serviço doméstico nunca cessaram. A consequência natural desse sistemático desrespeito e brutal violência foi um violento ódio e invencível desconfiança por parte dos índios em relação aos “brancos”, fenômeno que permanece até os nossos dias e vai se retroalimentando por uma prática, se não igual, assemelhada.

Mas, se em 1818 Martius já afirmava que “a conclusão triste que se deve usar é que o índio, em vez de ser despertado e formado pela civilização europeia ao contrário sofre dela como de veneno lento que acabará por dissolvê-lo e destruí-lo totalmente”; em 1904 Euclides da Cunha ao tomar conhecimento do regime de quase escravidão em que se encontravam os seringueiros e das expedições de extermínio contra os índios emite opinião semelhante ao do naturalista bávaro.

Após constatar que as tribos do Purus estavam nos últimos redutos para onde refluíram no desfecho de uma campanha secular de perseguições, Euclides da Cunha desabafa: “o narrador destes dias chega no final de um drama, e contempla surpreendido o seu último quadro prestes a cerrar-se” pois, enfatiza, os índios estão cercados em todos os quadrantes por peruanos, brasileiros e bolivianos densamente armados de rifles dispostos ao extermínio.

Nessa empreitada os caucheiros – extratores de uma borracha de categoria inferior – são os batedores mais avantajados dessa sinistra catequese a ferro e fogo voltada para o extermínio dos mais interessantes aborígenes sul-americanos.

Mais virulento ainda é o relato do encontro do explorador Carlos Fitz-Carral com esses índios, como relata Euclides da Cunha.
A regra é a caçada impiedosa, à bala, baseado numa tática de máxima rapidez do tiro e a máxima temeridade para assegurar o triunfo. Quando Fitz-Carral chegou em 1892 às cabeceiras do Madre-de-Diós, vindo do Ucayali pelo varadouro aberto no istmo que lhe conserva o nome, procurou captar do melhor modo os mashcos indomáveis que as senhoreavam. Trazia entre os piros que conquistara um intérprete inteligente e leal. Conseguiu sem dificuldades ver e conservar o curaca selvagem. A conferência foi rápida e curiosíssima.

O explorador, depois de apresentar ao chefe dos mashcos os recursos que trazia e o seu pequeno exército, onde se misturavam as fisionomias dispares das tribos que subjugara, tentou demonstrar-lhe as vantagens da aliança que lhe oferecia contrapostas aos inconvenientes de uma luta desastrosa. Por única resposta o mashco perguntou-lhe pelas flechas que trazia. E Fitz-Carral entregou-lhe, sorrindo, uma cápsula de Winchester.

O líder dos mashcos examinou-a, longo tempo, absorto ante a pequenez do projétil. Procurou, debalde, ferir-se, roçando rijamente a bala contra o peito. Não o conseguindo, tomou uma de suas flechas; cravou-a, de golpe, no outro braço, varando-o. Sorriu, por sua vez, indiferente à dor, contemplando com orgulho o seu próprio sangue que esguichava… e sem dizer palavra deu as costas ao sertanista surpreendido, voltando para o seu tolderío com a ilusão de uma superioridade que a breve trecho seria inteiramente desfeita. De fato, meia hora depois, cerca de cem mashcos, inclusive o chefe recalcitrante e ingênuo, jaziam trucidados sobre a margem, cujo nome, Playamashcos, ainda hoje relembra este sanguinolento episodio.

Assim tem sido a ocupação da Amazônia. E o que nós estamos assistindo no sul do amazonas é a trágica repetição de um roteiro, onde apenas os personagens e o cenário foram levemente alterados. De resto continua tudo igual.

O estado enquanto instrumento de dominação da classe dominante sempre recorreu a expedientes sorrateiros e estimulou guerras fratricidas para fazer o seu trabalho sujo.
Na época de Martius eram os batedores, posteriormente os bandeirantes; no período de Euclides da Cunha os seringalistas e os caucheiros e agora, em pleno século 21, o governo, por omissão ou qualquer outro expediente, estimula índios e posseiros a deflagrarem uma guerra com prejuízos previsíveis para ambas as partes e soluções incertas, até mesmo porque a pauta que mobiliza tanto a reivindicação dos índios – integridade de sua reserva legalmente demarcada – quanto a causa que anima a rebelião dos posseiros – o direito de ir e vir sem serem molestado por pedágios indígenas – são obrigações legais do poder público, até agora sem respostas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor