“Eu, Ana” Motivações submersas

Em noir sobre misteriosa mulher suspeita de crime, cineasta inglês Barnaby Southcombe deixa ao espectador o decifrar de suas motivações

Cabe ao espectador, neste “Eu, Ana”, e não à polícia decifrar os enigmas e motivações de Anna Welles (Charlotte Rampling). Mesmo porque Bernie (Gabriel Byrne), o chefe de polícia, tenta desde o início ligá-la ao caso. Ele vai montando o quebra-cabeça que, ao invés de ajudá-lo, torna-se cada vez mais intrincado. E percebe estar diante de algo que lhe escapa, ainda que se esforce e rompa as regras policiais e interfira nas investigações de seus subordinados.

É com esta estrutura que o cineasta inglês Barnaby Southcombe sustenta sua narrativa, baseada no livro de sua compatriota Elsa Lewin. Gênero com suas próprias convenções, o noir enreda sempre a mulher misteriosa, de vida dupla, o detetive particular decadente e a polícia às voltas com um crime indecifrável. A ação se desenvolve em ambientes sórdidos, frequentado por bandidos, cafetões e solitários e ruas dominadas pelas sombras. Southcombe atualiza estas convenções, exigindo cumplicidade do espectador.

A ação ao invés da Los Angeles dos anos 40 transcorre na Londres moderna, povoada de prédios sofisticados, apartamentos luxuosos, ruas cheias de sombras e luzes multicoloridas, clubes e boates classe A, e, sobretudo, políciais de mãos atadas, pois seu chefe os confunde. No entanto, predomina o clima de mistério dos policiais noir do Raymond Chandler (1888/1959) de “À Beira do Abismo (1946) e “Um Perigoso Adeus” (1976), em suas versões de Howard Hawks (1896/1977) e Robert Altman (1925/2006), respectivamente.

Ana leva vida normal

Anna, de meia idade, transita por estes ambientes, veste-se com elegância e bebe socialmente. Seu recato, só é traído pelo ar melancólico, de quem controla seus impasses. Southcombe dota-a de vida familiar, com a filha Emmy (Judh May) e a neta pequena. É, enfim, uma mulher de classe média, normal, procurando companhias de sua idade. O que Bernie encontra em suas investigações. Nada demais, o que aumenta sua curiosidade que, com o tempo, se transforma em compulsão, dada à forte atração exercida por ela. O que o impede, entretanto, de vê-la com é: uma mulher sufocada pelo passado.

O próprio espectador acha que ela leva uma vida comum, pelos cortes rápidos de Southcombe, mesclando passado e presente, em sua circulação pelas ruas e clubes noturnos e seu cotidiano com Emmy e a neta. Ela tenta ser uma boa mãe, uma avó carinhosa. A mesma que se envolveu com o violento desconhecido. E ele, o espectador, sente pena dessa mulher que procura escapar de si mesma, numa Londres de espaços demarcados. Ela, aparentemente, faz o que se exige da classe média, frequentando ambientes onde impera o status, as boas maneiras, as palavras certas, sem ostentação.

É neste vai-e-vem que Southcombe mostra as armadilhas da noite, dos clubes e boates classe A, não os bas-fonds frequentados pelos estigmatizados malfeitores e viciados do noir tradicional, sim pela alta classe média e pelos burgueses solitários ou não à procura de prazeres fugazes. Estes podem ser também, como atesta Southcombe, maníacos sexuais, violentos e perversos, que beiram a insanidade para obter prazer. Daí a cumplicidade do espectador com Anna – ela é mais vítima que algoz.

Convenções do noir se diluem

Além disso, Southcombe acrescenta ao seu noir o viés das motivações. Não o motivo direto, facilmente compreensível, do noir tradicional. Neste o detetive Philip Marlowe sempre desvenda o crime. Southcombe livra-se desta convenção. Anna, ao se defender, apenas põe para fora seus impasses ocultos pelo subconsciente. Porém desconhece sua violenta reação frente ao ataque do ocasional parceiro. É a motivação submersa, buscada por Bernie ao chegar aos liames, sem alcançar o que realmente a impulsiona. Nem o espectador dela tem conhecimento.

Então, mesmo nas sequências finais do filme, ele, o espectador, não decifra como no suspense hitchcockiano a verdadeira Anna. Faltam-lhe as ligações entre ela, o crime e suas reais motivações. Deste modo resta a Southcombe torná-lo seu cúmplice, ocultando da polícia suas submersas motivações. Agora só ele sabe, Bernie jamais as desvendará. Ele nada sabe de sua real vida privada. Anna vive dominada pelo subconsciente. É ele que dita suas ações, seu oscilar entre o real, o presente; e o passado, a família.

A polícia, com velhos métodos de investigação, jamais decifrará suas motivações. Inclusive Bernie, cheio de boas intenções. Southcombe desvenda-as apenas para o espectador e atesta a complexidade do ser humano. Sua multiplicidade e profundidade não comportam maniqueísmos. Mesmo na civilização dominada pela ciência e a tecnologia a pressa da solução impede que se abarque todo o ser humano e em se tratando do subconsciente leva tempo.

Eu, Ana”. (“I, Ana”). Drama/Suspense noir. França/Alemanha/Reino Unido. 2012. 93 minutos. Música: K.I.D. Canções: Richard Hamley. Fotografia: Bem Smithard. Roteiro: Barnaby Southcombe, baseado no livro de Elsa Lewin. Direção: Barnaby Southcombe. Elenco: Charlotte Rampling, Gabriel Byrne, Edie Marsan, Jodhi May.

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