Os legados contraculturais de Norma Benguell e Gabriela Leite

A morte de dois ícones do hedonismo dos anos 1960 e 1970

A primavera 2013 levou a atriz e cineasta Norma Benguell (1935-2013) e a encantadora prostituta e feminista Gabriela Leite (1951-2013) – ícones do hedonismo e de um postulado-alicerce da contracultura dos anos de 1960 e 1970: “Liberdade nos relacionamentos sexuais e amorosos”.

Norma Benguell foi manequim da Casa Canadá, nos anos de 1950; do teatro de revista de Carlos Machado; fez chanchada e gravou discos. Estrela do Cinema Novo, chegou à Europa a bordo de dois sucessos do nosso cinema: “Os Cafajestes” e “O Pagador de Promessas” – obra de Dias Gomes, filme de Anselmo Duarte, 1962, que ganhou em Cannes a única Palma de Ouro do Brasil, no qual Norma Benguell interpretava a prostituta Marli!

Em “Os Cafajestes”, de Ruy Guerra (1962), fez o primeiro nu frontal do cinema nacional; estrelou 64 filmes, peças de teatro, novelas e séries de TV. Dirigiu quatro filmes: “Eternamente Pagu” (1988); “O Guarani” (1996); “Magda Tagliaferro – O Mundo dentro de um Piano” e “Infinitamente” (2005). Perseguida pela ditadura de 1964, em 1971 ficou exilada em Paris.

Afirmou ter feito 16 abortos – jovem na era pré-pílula, optou não ser mãe. Viúva do ator italiano Gabrielle Tinti, viveu com ele por 30 anos. Indagada sobre como o conheceu, disse: “Dei uma festa que achei muito chata. Aí eu peguei um amigo e fomos dançar no Clube 84. Às seis da manhã, a casa estava toda aberta, não tinha mais ninguém, só um homem deitado no sofá. Eu falei: ‘Meu filho, a festa acabou’. Quando ele abriu os olhos azul-violeta, eu completei: ‘O quarto de hóspedes é ali’. E casamos”.

Aprendi com Gabriela
que prostituição não
é o mesmo que
exploração sexual e
que prostitutas não
vendem
seus corpos,
vendem prazer.

Gabriela Leite abandonou a faculdade de sociologia na USP, fim dos anos de 1970, para ser prostituta na Boca do Lixo, segundo ela, por “pura porra-louquice”. Começou a luta contra a repressão policial às prostitutas. De Sampa, foi para BH – “Toda prostituta um dia vai para BH ganhar dinheiro, lá tem muito cliente” –, onde ficou um ano. Seguiu para o Rio de Janeiro, em 1982, onde se encantou pela Vila Mimosa: “E esse foi um dia muito importante na minha vida, um dia que nunca vou esquecer… Entrei na Vila Mimosa e amei. Parecia a zona de cidade do interior…
Aquelas máquinas de música tocando em todas as casas. O som daquelas músicas bregas, tudo colorido. A imagem que eu tive da Vila Mimosa era a de uma grande festa. E fui ficando lá”.

De Vila Mimosa bateu asas na organização do Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, na criação do jornal “Beijo da Rua”, em 1988, ONG DaVida, em 1990, e a grife Daspu, em 2005: “Serão roupas insinuantes, sensuais, mas sem vulgaridade. Queremos resgatar a elegância das meninas do passado”; “a linha de batalha vai ser ousada, provocante, sem ser ridícula ou vulgar”. Foi o que registrei em “A Daspu é um deslumbre” (O TEMPO, 7.12.2005). Escreveu o livro “Filha, Mãe, Avó e Puta”, que virou peça de teatro (2009). Indagada sobre em qual desses papéis ela mais se realiza, disse: “Eu gosto muito de ser avó. Mas também gosto muito de ser puta”.

Guerreira dos direitos humanos das prostitutas, profissão reconhecida em 2002 pelo Ministério do Trabalho. Com Fernando Gabeira (PL 98/2003), lutou pela regulamentação da profissão, sem sucesso; ao morrer, apoiava o PL 4.211/2012, do deputado federal Jean Wyllys (PSOL), “Lei Gabriela Leite”, que garante direitos trabalhistas e legaliza prostíbulos.

Deixou duas filhas, uma neta e o marido, o jornalista Flávio Lenz. Aprendi com Gabriela que prostituição não é o mesmo que exploração sexual e que prostitutas não vendem seus corpos, vendem prazer.

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