“Sozinha” Carga pesada

Cineasta chinês Wang Bing trata das condições de vida de três crianças num vilarejo de Yunnan, longe do pai e abandonadas pela mãe

Em “Sozinha” a câmera do cineasta chinês Wang Bing está sempre próxima das três irmãs Ying, de 10 anos, Zhan, 6 anos, e Fen, 4 anos. Registra cada movimento delas, como se espionasse a dura realidade por elas vivida. Às vezes, ela se afasta para mostrar a casa de cômodo único, de terra batida, com raros móveis, por onde as meninas circulam. Elas vivem num vilarejo de Yunnan, a 3.000 metros de altitude. Nada ali se assemelha à agitada vida em Pequim, com seus arranha-céus, trânsito ebulitivo e multidão nas ruas.

Bing é cineasta dos documentários “A Oeste dos Trilhos” (451 minutos), sobre o fechamento de fábricas em Tiexi, e “Petróleo Bruto” (840 minutos), em que registra a exploração de petróleo em Qinghai. “Sozinha” (2013) é uma condensação de “Três Irmãs” (2012), de 153 minutos, para 89 minutos, que mantém o essencial da matriz. Trata do cotidiano de três irmãs que, abandonadas pela mãe e deixadas sob os cuidados da tia pelo pai, são obrigadas a cuidar da casa e das ovelhas, lavar roupa e sobreviver em meio às adversidades.

Toda a responsabilidade, no entanto, recai sob a mais velha, Ying, a quem cabe cuidar das irmãs. É nela que Bing concentra sua câmera, flagra seu olhar distante e seu dia a dia sem preocupações comuns às adolescentes de sua idade. Quando muito uma conversa com a prima, uma olhada na TV na casa da tia, uma discussão áspera com outra criança. Embora seja esta sua vida, ela e suas irmãs encontram tempo para brincadeiras, risos e alegria. Bing, com esta visão, ameniza o que sua câmera registra: a quebra do núcleo familiar e as adversidades sociais na atual.

Ying cuida de si msma

Bing não interfere nos entrechos, não analisa; só registra-os. É quase um espectador. Quando mostra que por trás da câmera há um diretor-entrevistador é para lançar luzes sobre a solidão e o abandono das três meninas. E se dirige a Ying para saber onde estão seus pais. Ela responde que a mãe as abandonou e o pai está trabalhando numa cidade para sustentá-las. Ela nada mais sabe, nem quando o pai voltará. E nisso reside a intervenção de Bing. Ele estrutura um documentário que vai aos poucos assumindo caráter ficcional, não que construa uma narrativa, mas pelo modo como faz as sequências evoluírem. O espectador vai dando conta que há uma história ali.

É a história de Ying. Na segunda parte do filme, ela ficará sozinha com esporádicas visitas do avô. O pai levou as duas irmãs para morar com ele na cidade onde trabalha. Ela permanece em casa às voltas com suas tarefas e as estende à escola na cidade. Ali mantém a mesma postura, o olhar de quem se fixa no que só ela sabe, alheia ao que existe à sua volta. Bing também não lhe indaga o que é. Ninguém cuida dela. Ela cuida de si. Os longos planos-sequência mostrando-a sozinha em casa e indo pelas trilhas da montanha dizem tudo. “Vou levar as duas pequenas, ela fica”, diz o pai.

Diferente do cinema de Zhang Yimou que trata do coletivo (“O Sorgo Vermelho” e “Nenhum a Menos”) e se relaciona com as superestruturas para mudá-las, o de Bing trata do individual. Do indivíduo isolado na gigantesca estrutura político-social, que preserva o núcleo familiar, mesmo esfacelado. O pai, depois de longa ausência, trabalhando numa mina de carvão, regressa a casa, agora com outra companheira e as duas filhas dela. Uma recomposição do esfacelado. Nada disso escapa ao olhar distante de Ying e à câmera de Bing. Ela continuará entregue à ordenha das ovelhas, da preparação da comida, da lavagem de roupa.
Inexiste espaço para consumismo

Neste seu universo, ao contrário das garotas do Ocidente, a TV é algo distante. Ela está ali para ser vista, mas Ying nela não presta atenção. Bing, mesmo num documentário, espalha situações e objetos que têm menos importância para ela do que para outras meninas ocidentais em tais circunstâncias. Quando muito ela atina para o tênis que ganha do pai, ainda sim sem vaidade. É mais uma necessidade em meio ao duro inverno. As situações vividas por ela não lhe permite escapar ao que vê e ao que a câmera de Bing detalha.

Inexiste espaço para consumismo.

No entanto, chama atenção em “Sozinha” a facilidade com que Bing trafega do particular para o geral. Na segunda e terceira parte, ele insere Ying na cidade, um universo maior do que o dela, e o próprio pai com suas irmãs Zhen e Fen mudando o visual e o comportamento das pequenas. Sinal de que há num mundo diferente, uma relação social mais ampla. E principalmente quando o isolamento dela se rompe com a chegada da nova companheira do pai e suas novas “irmãs”.

Há uma mutação, ainda que incipiente, em seu microcosmo. Bing não o anima, usa apenas o som ambiente para acentuar os estágios de sua existência. O espectador pode ver esta abordagem como neorrealista ou uma critica as estruturas sociais chinesas, mas é um cinema que de fato incomoda. E pode acabar servindo a outros interesses, que não os de avançar politicamente em meio aos riscos do criticismo burguês.

Sozinha”. (“Gudu”). Documentário. 2013. Inglaterra/Hong-Kong/China. 89 minutos. Fotografia: Huang Wenhai, Li Peifeng, Wang Bing. Roteiro/direção: Wang Bing. Elenco: Ying, Zehn, Fen.

(*) Exibido no Indie13 – Mostra de Cinema Mundial, 6 a 12/09/2013, Complexo Belas Artes 1, 2 e 3 e Oi Futuro, realizado pela Zeta Filmes.

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